Tour: Pogacar transformou-se num 'canibal' sem deixar de ser um "bom rapaz"
“Até eu já nem sei porque ataco”, confessou, entre risos, após a 17.ª etapa, num perfeito resumo daquela que é sua essência.
Quando todos diziam que era demasiado impulsivo e tinha demasiados objetivos numa temporada, por oposição ao calculista e ‘mecânico’ Jonas Vingegaard, o esloveno de 25 anos fez ouvidos ‘moucos’ e manteve-se fiel ao seu espírito livre e destemido, não abdicando de guiar-se pelo instinto, mais do que pelo potenciómetro, nem de atacar quando não precisava, simplesmente para dar espetáculo ou, mais friamente, por querer bater todos os recordes, nomeadamente do único homem com quem parece rivalizar na história do ciclismo.
“Ele pode ser o novo ‘Canibal’”, prognosticou há três anos Eddy Merckx, o ‘Canibal’ original, ainda antes de o corredor da UAE Emirates ter elevado o seu palmarés ao nível dos melhores de sempre, com 84 triunfos, entre eles seis etapas no Tour, seis no Giro, três na Vuelta, além de três Voltas à Lombardia, duas Liège-Bastogne-Liège, duas Strade Bianche, ou a trilogia Volta a Flandres, Amstel Gold Race e Flèche Wallone em 2023.
De facto, este é o mundo de ‘Pogi’ e os outros apenas vivem nele, como se viu nesta Volta a França, onde, numa demonstração exacerbada de força, replicou o domínio absoluto do Giro, ganhando novamente seis etapas, agora diante de adversários de maior prestígio, nomeadamente Vingegaard, o ciclista que o derrotou nas duas edições anteriores e que, agora, ficou a mais de seis minutos, e Remco Evenepoel, com quem estabeleceu um verdadeiro ‘bromance’.
“Não procuro uma vingança, mas é verdade que fui segundo nas últimas duas Voltas a França e isso motivou-me a regressar mais forte e mostrar que podia voltar a ganhar o Tour, que as minhas duas primeiras vitórias não foram por acaso”, reconheceu no alto de Isola 2000, onde celebrou uma das suas seis vitórias em etapas nesta edição da ‘Grande Boucle’.
Depois de ganhar de forma surpreendente a edição de 2020, destronando o compatriota Primoz Roglic no contrarrelógio da penúltima etapa, arrasou em 2021, perfilando-se como um bicampeão consagrado e aparentemente imbatível, capaz de vencer sem grande equipa a apoiá-lo ou mesmo depois de perder tempo em azares, mas, nas duas edições seguintes, teve idêntico número de contrariedades, essencialmente uma chamada Vingegaard.
A impactante derrota no Tour do ano passado – ao qual chegou após quase dois meses de paragem devido a uma fratura do pulso esquerdo -, perpetuada naquele icónico “I’m gone. I’am dead” (‘Já fui, estou morto’, na tradução em português), foi um duro golpe para o ciclista da UAE Emirates, forçando-o a aprender com os erros.
Alterou o planeamento da pré-temporada, redefiniu objetivos, aventurou-se pela primeira vez no Giro, onde concretizou um sonho e fez crescer outro – o da ‘dobradinha’ que agora alcançou -, reconheceu a importância de alimentar-se bem, hidratar-se e manter-se fresco na alta montanha, tornou-se menos impaciente e também cínico q.b. em corrida, replicando os ‘mind games’ da Visma-Lease a Bike com Vingegaard, sem deixar de improvisar diariamente na estrada.
“Eu nunca vou mudar”, garantiu neste Tour. E ainda bem que assim é, embora baste observá-lo atentamente para perceber que pouco (ou nada) resta daquele ‘teenager’ tímido, com a cara cheia de borbulhas e visíveis dificuldades em expressar-se em inglês, sobretudo diante dos ‘intimidatórios’ jornalistas, que conquistou a primeira vitória como profissional na segunda etapa da Volta ao Algarve (haveria de vencer também a geral) há pouco mais de cinco anos.
Este ‘Pogi’ transborda confiança, sem nunca soar arrogante - embora às vezes o seja nas suas declarações e, sobretudo, em alguns ataques que servem ‘apenas’ para ‘humilhar’ os adversários -, à vontade e descontração em todas as vertentes do seu quotidiano, seja em corrida, em entrevistas ou nas redes sociais, onde partilha conteúdos divertidos ou se intromete em ‘lives’ de outros colegas do pelotão, desde Victor Campenaerts (a quem deu conselhos de moda) a Geraint Thomas, com quem ‘trocou’ vários comentários ‘provocatórios’ durante o Giro2024.
De permanente sorriso no rosto, mesmo quando está a pedalar, conquistou rivais, a quem não deixa de cumprimentar e elogiar depois das maiores batalhas, adeptos, com o seu jeito de rapaz que não se leva muito a sério, e colegas de equipa, como o português João Almeida, encantado por trabalhar para o “incrível” esloveno.
“Acredito que venho de uma boa família e que fui educado para ser um bom rapaz”, disse há três anos o ciclista que tem como ídolos Alberto Contador e Andy Schleck.
Curiosamente, o primeiro amor do rapaz, nascido em 21 de setembro de 1998, em Komenda, até nem foi o ciclismo, modalidade que apareceu quase por acaso na sua vida, quando era o futebol a força que o movia; foi o irmão Tilen, que se inscreveu no clube de ciclismo de Ljubljana, o grande responsável por hoje o esloveno ser tricampeão do Tour. “Quis imediatamente imitar o meu irmão, mas não tinham uma bicicleta tão pequena no clube”, revela no seu site pessoal.
Fazendo jus à perseverança evidenciada na sua carreira, não desistiu de seguir as pisadas de Tilen e, em pleno inverno, com apenas nove anos, começou a acompanhá-lo nos treinos, participando na sua primeira corrida logo em 2008, com bons resultados, para nunca mais parar.
O potencial tremendo, corroborado pela conquista da Volta a França do Futuro (2018), chamou a atenção da UAE Emirates, que lhe ofereceu um contrato (atualmente quase vitalício), com o desfecho que agora se conhece.