Mundial-2026: Duelo entre o Iraque e o Kuwait põe à prova uma relação perturbada por Saddam Hussein
Os autocarros cheios de iraquianos que atravessaram a fronteira para assistir ao jogo ilustram os laços que se vão estreitando lentamente, duas décadas após a queda de Saddam durante a invasão liderada pelos Estados Unidos em 2003, embora ainda existam sensibilidades e os preparativos para o jogo tenham gerado alguma controvérsia.
"Não consigo explicar o que sinto", disse Abbas Abdelatif, um iraquiano de meia-idade, à espera de um autocarro na cidade de Basra, no sul do Iraque, que faz fronteira com o Kuwait. "Não vejo o Kuwait há mais de 30 anos. Houve guerra e houve problemas, mas agora, se Deus quiser, a situação vai melhorar cada vez mais."
O jogo terá lugar no Estádio Internacional Jaber Al-Ahmad, na Cidade do Kuwait. O Iraque lidera o Grupo B da qualificação asiática para o Campeonato do Mundo de 2026.
Reencontro
O Iraque, com uma população de 43 milhões de habitantes (10 vezes superior à do Kuwait), tem um historial de rivalidade com o pequeno emirado rico em petróleo. Os dois Estados estão a construir projectos portuários rivais, mas também querem ligar as redes eléctricas até ao final de 2024.
O Iraque recorreu à diplomacia futebolística para reparar as relações com os Estados árabes do Golfo, após décadas de conflitos e relações difíceis. A guerra mais recente, contra o Estado Islâmico, terminou no final de 2017. No ano passado, o país acolheu a Taça do Golfo em Bassorá pela primeira vez desde 1979, um marco na reintegração regional.
Yousif Faal, porta-voz da Federação Iraquiana de Futebol, disse esperar que a rivalidade, outrora considerada a maior do mundo árabe, se mantenha em campo. "É uma competição desportiva, não devemos envolver a política nisto", afirmou.
A invasão
Saddam invadiu o Kuwait e anexou-o durante um curto período de tempo em agosto de 1990, antes de ser expulso por uma coligação liderada pelos Estados Unidos da América na Guerra do Golfo. O Iraque foi subsequentemente sujeito a sanções severas e teve de pagar mais de 52 mil milhões de dólares em reparações de guerra, que ficaram concluídas em 2022.
Apesar de as relações terem melhorado desde que Saddam foi deposto em 2003, continuam a existir desafios. No ano passado, o mais alto tribunal iraquiano decidiu que um acordo de fronteira marítima com o Kuwait era inconstitucional, desferindo um golpe na crescente boa vontade.
"O Kuwait quer ter boas relações com os seus vizinhos, especialmente com o Iraque, mas o Iraque precisa de mostrar e confirmar as suas boas intenções, resolvendo uma série de questões, especialmente a questão da fronteira marítima", disse Abdulaziz Alanjeri, fundador do grupo de reflexão Reconnaissance Research, sedeado no Kuwait.
Província
Alguns velhos hábitos também persistem. Adnan Dirjal, o presidente da Federação Iraquiana de Futebol, referiu-se acidentalmente ao Kuwait como uma província durante uma entrevista, repetindo a afirmação de Saddam de 1990 de que o Kuwait era a 19.º província do Iraque. Mais tarde, pediu desculpa.
As primeiras informações sugeriam que poucos ou nenhuns adeptos iraquianos seriam admitidos, o que levou o governador de Bassorá a advertir contra a reciprocidade. Mais tarde, o embaixador do Iraque no Kuwait anunciou que 5 000 adeptos seriam autorizados a assistir ao jogo, com requisitos específicos em termos de passaportes e veículos.
"Penso que o mais importante é que este evento desportivo é o início da abertura da porta para discutir as relações entre o Kuwait e o Iraque", disse Anjeri. "É um bom sinal de que os nossos irmãos iraquianos estão interessados em visitar o Kuwait."
Os adeptos iraquianos encaram o jogo como um gesto de boa vontade. "Espero que o legado do regime anterior desapareça através desta nova geração", disse Amer Hakim, um adepto iraquiano. "O povo iraquiano não tem culpa do que aconteceu por causa de Saddam Hussein."