Vítor Pereira, o treinador-viajante: "Para mim o futebol é uma droga, não consigo viver sem ele"
Vítor Pereira é muito mais do que um simples entusiasta. Verdadeiro fanático do futebol, o português formou-se como treinador no FC Porto, onde teve a sorte de treinar a equipa principal de 2011 a 2013. Venceu o campeonato português nessas duas épocas, com apenas uma derrota. Os anos de formação passou-os com as equipas jovens no centro de treino dos dragões, onde pôde colocar à prova um princípio fundamental: o domínio da bola.
Verdadeiro "toxicodependente" - como se descreve a si próprio - Pereira nunca conseguiu deixar de treinar. O futebol levou-o a todos os cantos do mundo, como qualquer português que se preze. Como admite o atual treinador na Arábia Saudita, os portugueses são viajantes e quando um desafio se apresenta num local, nada os detém.
Quanto ao futuro, o português imagina-o numa das cinco grandes ligas europeias, onde teve oportunidades de trabalho no passado, mas onde a lei do futebol se aplicou e apenas adiou um prazo que há-de chegar. A Ligue 1 atrai-o, e Vítor Pereira confessou isso mesmo ao Flashscore.
- Olá Vítor, é um prazer falar consigo. Antes de mais, parabéns pela vitória por 5-0 sobre o Abha, na passada quinta-feira. O trabalho que tem vindo a desenvolver no Al-Shabab, semana após semana, desde que chegou, está a dar frutos?
- Bem, antes de mais, obrigado pelas palavras. Penso que a equipa tem agora uma identidade que se aproxima daquilo que queremos que seja. Desde que chegámos, dia após dia, criámos uma identidade forte para a nossa equipa, querendo que seja protagonista nos seus jogos.
- Depois de o Al-Shabab ter terminado no top 4 na época passada, chegou ao clube num período complicado (atualmente em 11.º, com 9 vitórias, 8 empates e 11 derrotas). E, no entanto, tem um plantel bastante interessante, com jogadores como Yannick Carrasco, Rakitic, Saiss, Diallo e Vitinho. Que medidas tomou à chegada para tentar corrigir a situação?
- Como sabem, o campeonato desta época é completamente diferente do da época passada. Este ano, quatro equipas investiram muito dinheiro, o que criou uma grande diferença entre elas e o resto da liga. O que aconteceu no nosso clube é que houve uma mudança de presidente e quatro mudanças de treinador durante o ano. São coisas que se pagam. Temos jogadores de qualidade. Para encontrar o nosso caminho, o que tentámos fazer quando chegámos foi transmitir ideias muito claras para um jogo que quer ser dominante com a bola e quer ser agressivo quando a perda. Estas ideias foram trabalhadas desde o primeiro dia em que chegámos. Hoje, como é óbvio, estas ideias estão a tornar-se cada vez mais evidentes em campo.
- Então o jogo desta sexta-feira contra o Al-Ittihad é um bom teste, não?
- Mas já jogamos muito bem contra o Al-Nassr. Fizemos um grande jogo com muita personalidade (derrota por 2-3), eles acabaram por ganhar com um golo no final, é a lei do futebol. Mas também fizemos um jogo muito bom contra o Al-Hilal (derrota por 3-4). Perto do fim, tivemos a oportunidade de marcar para empatar 4-4. Gostamos de jogar contra equipas com argumentos sólidos, porque sabemos que o jogo será mais aberto. Queremos fazer um jogo positivo. E agora, contra o Al-Ittihad, acho que vai ser mais um jogo aberto. Veremos o que acontece.
- Quais foram os motivos que o levaram a (re)experienciar o futebol na Arábia Saudita?
- A experiência no Brasil não foi fácil por causa do número de jogos e das longas viagens. Depois de pouco mais de um ano, senti que precisava de fazer uma pausa. Aproveitei a oportunidade para refletir, criar novas ideias e novos conceitos. Para estudar. E também para passar algum tempo com a minha família e desfrutar do tempo juntos. Depois vieram as primeiras ofertas para voltar ao trabalho. Depois de estudar, depois de aprender novos conceitos e novos exercícios, senti a necessidade de os aplicar. Para mim, foi uma boa decisão vir para aqui e experimentar estes conceitos. Estou muito contente com isso. Também tenho a sorte de ter um grupo de trabalho muito bom onde posso experimentar estes conceitos, porque eles aceitam estas ideias. Dão tudo o que é necessário para evoluir. É por isso que estou tão contente por me ter sido dada esta oportunidade.
- O que me está a dizer é interessante. Durante um ano, estudou novos conceitos. Porque é que fez isso? Porque sentiu que o futebol estava a evoluir para um tipo de jogo diferente, que tinha de aprender coisas novas... Quais foram as razões que o levaram a querer estudar? É bastante interessante, é exemplo de alguém que pode evoluir ao longo do tempo.
- Estudo futebol todos os dias. Tenho o hábito de dizer aos meus filhos que estudo muito mais do que eles na universidade, porque estudo conceitos todos os dias. Os conceitos que eu tinha há uns anos e que pensava ter adquirido para a vida já não existem. Posso dar-vos um exemplo: eu achava que tocar rápido era a melhor coisa, para que a equipa adversária não tivesse tempo para recuar e fechar o espaço. Hoje, esse conceito mudou. Eu treinava com dois toques, um, dois toques, um, dois toques... É importante treinar assim. Mas hoje, para mim, é importante alternar o ritmo com a bola. É importante saber abrandar, para acelerar no momento certo, para encontrar o espaço, para tomar as decisões corretas. E criar um gatilho no momento em que queremos acelerar. É um conceito completamente diferente daquele que eu tinha há 11 anos. E vem do facto de eu estudar todos os dias. Para mim, o futebol é como criar uma identidade, é como pintar um quadro. Dá-me a oportunidade de exprimir a minha personalidade, a minha criatividade. Para mim, o futebol é isso. Não é fechado, nunca é fechado. E isso é muito importante, mesmo na vida em geral.
- O Al-Shabab é a sua segunda passagem pela Liga saudita, sendo que há 10 anos treinou o Al-Ahli (2013/14). Como alguém que viveu duas épocas diferentes, o que acha da evolução da liga e do futebol na Arábia Saudita?
- Antes de mais, encontrei um campeonato diferente, muito mais organizado. Os campos de treino e as estruturas são melhores, os campos são muito melhores. Não encontrei um único que não oferecesse as condições ideais para jogar. Para mim, é uma grande diferença em relação a há 10 anos. Também encontrei melhores jogadores e melhores treinadores. Uma liga que está a fazer grandes esforços para se desenvolver e preparar o Campeonato do Mundo.
- Assinou um contrato de cinco meses com o Al-Shabab FC, válido até 30 de junho de 2024. Pensa em prolongar a sua aventura na Arábia Saudita?
- Neste momento, concentro-me nos próximos jogos. Também estou concentrado em melhorar a qualidade do nosso jogo. Para mim, não se trata apenas de ganhar. Gosto de ganhar, mas com qualidade e uma identidade clara. É isso que fazemos, que tentamos fazer, dia após dia. Depois, quando chegar a altura, sentar-nos-emos e falaremos. Penso que eles querem que eu fique aqui, mas preciso de ver que soluções tenho na Europa. Depois disso, verei o que vou decidir.
- É um treinador com muita experiência e já treinou em muitos países (Portugal, Arábia Saudita, Grécia, Turquia, Alemanha na 2.ª divisão, China, Brasil)... No entanto, ainda não treinou numa das cinco grandes ligas europeias. Isso é algo que não lhe sai da cabeça?
- Sim, é algo que vai acontecer, é claro que vai. Tenho estado um pouco impaciente à espera do momento certo para isso. No passado, já tive a oportunidade de ir a Inglaterra, França e Espanha. Mas, por uma razão ou outra, não aconteceu. Mas um dia há-de acontecer. Acredito muito na qualidade do meu trabalho. Com um pouco mais de paciência, como tenho agora, isso vai acontecer naturalmente.
- Falou de França. A Ligue 1 é um campeonato e França é um país que o atrai?
- Sim, é uma liga que eu sigo. Quando estudo, olho sempre para as equipas e os treinadores que podem trazer algo de diferente. Isso faz-me pensar, refletir e também desfrutar do meu jogo. É isso que os treinadores fazem, porque é assim que analisamos os jogos e vemos como o futebol evolui. A Ligue 1 é um campeonato a que continuo a prestar atenção. Porque também tem muitos bons jogadores, de qualidade. Um treinador tem sempre de fazer um trabalho de prospeção, para perceber o seu jogo. Nós também temos lá um treinador... o Paulo (Fonseca), que está a fazer um excelente trabalho. E eu sigo-o muito de perto. É um campeonato competitivo, com bons treinadores, bons jogadores e com uma organização bem estruturada. Por isso é um campeonato que me interessa.
- Para aqueles que o conhecem menos em França, como definiria a sua abordagem ao futebol? Que filosofia adota, quais são as suas táticas (vi que utiliza atualmente uma defesa a três)... Em suma, como se definiria enquanto treinador?
- Qualquer que seja a estrutura, qualquer que seja a forma, tento sempre encontrar uma tática que permita aos jogadores sentirem-se confortáveis com o seu jogo. Já trabalhei com muitas estruturas táticas. É por isso que me sinto confortável no meu trabalho. Atualmente, tento encontrar um estilo de futebol baseado no domínio e na posse de bola. Estive oito anos no FC Porto, dos quais 5 foram na formação. Fiz lá a minha formação como treinador, por isso treinei os melhores jovens jogadores do país. Em cada uma das minhas equipas, introduzi um estilo de futebol baseado no domínio, na posse e na pressão, um jogo com qualidade ofensiva mas também agressivo quando a bola era perdida. E sem hesitar a jogar também em transição.
Sou um treinador que aprendeu a jogar com uma certa complexidade... Mas uma complexidade de qualidade. Não treinei para não ser despromovido ou para não perder. Treinei para equipas que jogam para ganhar títulos. E é desse tipo de futebol que eu gosto. Futebol de qualidade, de pressão, de posse de bola. Mas posse intencional, com a intenção de acelerar o jogo no momento certo. Treino equipas que sabem definir ou identificar o "gatilho" defensivo. Porque, para mim, a defesa também tem de ter ritmos diferentes. Por exemplo, posso estar numa fase de ritmo mais baixo, a fechar espaços no meio-campo. E depois de identificarmos o nosso adversário, definimos o nosso "gatilho". Chamo-lhe o momento em que a equipa tem de ser capaz de acelerar. É esse o meu futebol. Futebol com intencionalidade. É preciso compreendê-lo coletivamente. Toda a gente tem de o entender. Mas se o entendermos aqui, na Arábia Saudita ou na China, podemos entendê-lo em qualquer lado. O futebol transmite a nossa personalidade. A personalidade do treinador. E eu gosto de dominar o jogo.
- Quando o ouço, sinto que estou a ouvir as mesmas ideias que o Paulo Fonseca no Lille...
- O Paulo e eu temos um ADN futebolístico semelhante. Sabe, eu estive à frente da equipa principal do FC Porto durante dois anos... E depois o Paulo substituiu-me... (risos)
- Existe um verdadeiro caso de amor entre França e Portugal. Muitos portugueses jogam, jogaram, treinam e foram treinados aqui (Vitinha, Gonçalo Ramos, Danilo, Paulo Fonseca, Pauleta, Bernardo Silva, Moutinho, Guerreiro, Paulo Sousa, Jardim, Villas-Boas, Artur Jorge...). O facto de os seus compatriotas já terem deixado a sua marca neste campeonato motiva-o a continuar esse legado?
- Somos um país pequeno, mas que viaja pelo mundo. Eu sou um exemplo disso, somos viajantes, gostamos de desafios. Quando um desafio nos aparece, nós vamos e adaptamo-nos facilmente. Os jogadores e os treinadores estão hoje espalhados por todo o mundo. E acho que, no que toca a treinadores, Portugal tem uma marca de competência extraordinária. Podemos ser um país pequeno, mas produzimos muito talento. Tanto jogadores como treinadores. Também ganhamos títulos em muitos países. Portugal tem investido muito na formação dos seus treinadores. E penso que, ano após ano, saem treinadores de qualidade que depois percorrem o mundo. Em França, é verdade que há um legado e um português que vá para lá tem de ter em conta a história e a relação que existe entre os dois países. O Paulo (Fonseca) representa-nos bem porque está a fazer um excelente trabalho no Lille.
- Tem preferência por um clube em França ou está a pensar num desafio na Ligue 1?
- Não, não especificamente. Mas sei o que procuro e sei que vai acontecer. Gostaria de um projeto que me permitisse criar uma identidade. Olho muito para o centro de formação, já vem comigo do FC Porto. Tenho esta ligação com os jovens, gosto de os pôr a trabalhar, gosto de descobrir, detetar e desenvolver jovens talentos. E gosto de criar a minha própria identidade de jogador com o grupo que estou a formar…
- Então seria a médio e longo prazo? Porque é preciso tempo para pôr em prática as nossas ideias, para integrar os jovens…
- Sim, mas não necessariamente... Quanto mais experiência se tem, mais rapidamente se consegue criar uma identidade para o jogo. Normalmente, chamo os jogadores do centro de formação todas as semanas. E, muito rapidamente, identifico os melhores e ponho-os a jogar... Costumo usar o exemplo de Arda Guler. O Arda Guler veio treinar comigo para o Fenerbahçe quando tinha 16 anos. Para mim, a idade não importa. O que conta é a qualidade do rapaz. Se tiveres qualidade, podes ficar comigo.
Estou à procura de um projeto que me permita ganhar com qualidade, criar a minha própria identidade, com jovens jogadores da academia. Quando as pessoas olharem para a minha equipa, saberão que é minha porque é a minha identidade. Seja em casa ou fora, a identidade será a mesma.
- Falemos um pouco do campeonato português, onde se sagrou campeão por duas vezes com o FC Porto. Olhando para trás, como vê a sua carreira na equipa principal dos dragões?
- No FC Porto fui treinador durante cinco anos na formação. Depois decidi que queria ser o treinador principal. A primeira vez que saí fui para um clube do terceiro escalão (AD Sanjoanense), e disseram-me: “Vítor, se saíres, não voltas mais”.... Passado um ano, chamaram-me de volta (risos). E voltei, por razões pessoais. Depois, passado um ano, pedi para sair outra vez, mas agora para Santa Clara, na Liga 2. Disseram-me: “Vítor, se saíres...”. Mas eu sabia que ia voltar.
E mais uma vez, passado um ano, pediram-me para voltar e comecei a trabalhar na equipa principal. Foi com o André (Villas-Boas), que estava no Porto e os diretores pediram-me para vir ajudá-lo como adjunto. Aceitei e foi um ano em que ganhámos tudo, Liga Europa, Supertaça, Liga, Taça... Ganhámos tudo. O André decidiu então ir para o Chelsea. Ofereceu-me a possibilidade de ir com ele, mas o FC Porto pediu-me para ficar. Eles insistiram e disseram-me 'não, não vais sair porque vais ser o treinador principal'. Não é fácil para um adjunto tornar-se treinador de um clube como o FC Porto.
O que aconteceu? Como é sabido, quando uma equipa ganha a Liga Europa, os jogadores - a grande maioria - esperam jogar nos grandes campeonatos. Não foi nada fácil. O primeiro ano foi mesmo muito, muito difícil. Agora, gostaria de realçar um ponto: em duas épocas comigo como treinador, a equipa perdeu um jogo no campeonato. Foi um jogo contra o Gil Vicente. Como conseguimos isso? Porque tínhamos uma equipa que dominava muito o jogo e sabíamos trabalhar com paciência.
Depois de dois anos de contrato, o FC Porto quis que eu renovasse. Eles queriam que eu ficasse, mas eu estava muito perto de assinar pelo Everton na Premier League.... Eu queria ir para a Premier League. Por isso, decidi não renovar o contrato e, em vez de ir para a Premier League - porque fui para Inglaterra, mas não deu certo - vim para a Arábia Saudita! As voltas que o futebol dá. De um dia para o outro, tudo pode mudar.
Por que aceitei esse desafio na altura? Porque, para mim, o futebol é uma droga. Quando saí do FC Porto, não queria ficar parado. Queria treinar e vim para o Al-Ahli.
- Que história! Falou do seu registo no FC Porto, onde só perdeu um jogo em dois anos. Igualar esse registo seria muito complicado, seja para o FC Porto, Benfica ou Sporting?
- Sim, muito complicado. Ainda não vi nenhuma equipa fazer o mesmo. Não vi nenhuma. E houve muitos grandes treinadores...
- Como vê a situação atual do futebol português?
- Portugal é um país capaz de competir com as maiores equipas da Europa com muito poucos recursos. Está-nos no sangue. As equipas são competitivas e, com muito pouco dinheiro, conseguem criar grandes equipas. Hoje em dia, o campeonato é um pouco como no meu tempo, com três ou quatro equipas a lutar para serem campeãs. E depois, nas competições europeias fazem coisas incríveis com os recursos que têm. Por isso, temos de continuar a desenvolver este trabalho.
- O próximo Campeonato da Europa aproxima-se a passos largos e Portugal está entre os candidatos. Como avalia as hipóteses de Portugal na competição em comparação com a outra grande favorita, a França?
- A minha opinião é que nunca tivemos tanta quantidade e qualidade. Mesmo quando chega a altura de escolher os melhores, de fazer a lista, há jogadores muito bons que ficam de fora. E depois temos também um treinador que é brilhante naquilo que faz e que tem a capacidade de alinhar o grupo num único objetivo, que eu penso ser possível. Este é um torneio em que é preciso ter um pouco de sorte, o alinhamento tem de estar certo. Se fores ganhando, crias uma dinâmica de vitória.... Por isso, acho que tudo pode acontecer. Tudo pode acontecer, ainda mais com a qualidade dos jogadores que temos. E com o trabalho do Roberto Martinez, que é excelente.
- Gostaria de treinar uma equipa nacional um dia? É algo que gostaria de fazer e vê isso como um passo natural no seu desenvolvimento como treinador?
- Talvez um dia. Mas, para já, sinceramente, não! Não porque o futebol para mim é uma paixão, mas também porque é uma droga. E quando se toma uma droga, precisa-se dela todos os dias para viver. Não consigo viver sem ela. Para me sentir vivo, tenho de a tomar todos os dias. Não posso ficar à espera.