Pedro Machado: "Gosto muito que o jogador se sinta feliz dentro da minha ideia de jogo"
"Era um adjunto muito feliz e realizado, mas..."
- Como surge o gosto pelo treino?
- Iniciei o meu percurso de jogador no GD Bragança, nos sub-10. Durante o período de formação, era crítico do que se fazia. No segundo ano de júnior, senti que perdi o gosto por jogar e pedi ao treinador, o senhor Beto Antas, uma pessoa muito importante para mim, se podia ficar no banco e fazer relatórios – passes certos, errados, muito básicos, sem noção ainda das coisas. Viram o gosto que eu tinha por aquilo e convidaram-me para ser o treinador dos sub-15 do Futebol Clube Mãe de Água. No primeiro ano de sénior, isso fez-me querer entrar para a faculdade. Tirei uma licenciatura e um mestrado na área de Futebol e comecei a treinar na formação: Paredes, Penafiel, Freamunde. Sub-10, sub-15, sub-17, sub-19, até que surgiu um convite do mister Calica para ir para o Espinho, na altura no Campeonato de Portugal, como adjunto dele.
- Conte-nos como foi o percurso até começar a trilhar o seu próprio caminho enquanto treinador principal.
- Depois de trabalhar com o mister Calica, fui para os sub-17 do Freamunde, onde fizemos uma excelente época. O treinador da equipa principal era o Carlos Pinto, que acompanhava muito a formação e convidou-me para ser adjunto dele. Passar do Campeonato de Portugal para a Liga 2 deixou-me muito feliz, e comecei com o Carlos Pinto no Freamunde. A partir daí, foi um percurso de que me orgulho: do Freamunde para o Santa Clara, depois para o Paços de Ferreira na Liga, voltámos ao Santa Clara e conseguimos a subida após 15-17 anos. Depois, passei pela Académica, Leixões, Vilafranquense, Chaves, e consegui mais uma subida com o Famalicão. Orgulho-me muito dessas duas subidas. O Famalicão marcou-me pela festa em si, com a cidade toda envolvida. Nunca me vou esquecer da viagem do estádio à câmara – acho que não cabia mais ninguém. Depois, fomos para o Vilafranquense, atual Aves, o último clube onde estive como adjunto.
- Sentia-se bem nesse papel de adjunto?
- Era um adjunto muito feliz, realizado e tinha bastante importância, mas fui aconselhado por muita gente a iniciar-me como treinador principal. Não era um adjunto a querer ser principal, mas acabei por sair e fui da Liga 2 para a Distrital. (...) É curioso porque iniciei a minha formação como treinador na formação no Freamunde e comecei como adjunto também no Freamunde, e acabo por iniciar a carreira como principal, novamente no Freamunde.
De Freamunde a Coimbra: os capítulos da carreira de Pedro
I - Freamunde (26 jogos: 15 vitórias, 7 empates e 4 derrotas)
"As pessoas diziam que eu tinha perfil de líder como adjunto, e o mister Carlos Pinto dava-me muita liberdade também nesse papel. Isso obrigou-me a desenvolver algumas competências e defesas que considero importantes. Tudo aconteceu de forma muito natural, e as coisas acabaram por correr bem. No Freamunde, encontrei um clube com muitos problemas financeiros, e o objetivo inicial era a manutenção. A 19 de dezembro, conseguimos garantir a fase de campeão, depois de um início muito bom com nove vitórias e um empate nos primeiros 10 jogos".
II - Vila Meã (17 jogos: 6 vitórias, 4 empates e 7 derrotas)
"Era um clube que subia e descia constantemente. Atingimos o objetivo praticamente a meio da época. Houve algumas divergências com a direção, mas saí mantendo uma excelente relação. No entanto, havia algumas coisas com as quais não me identificava e, em prol do grupo, decidi sair. Garantimos a manutenção. Saí num sábado e, na segunda-feira, recebi uma chamada do Anadia".
III - Anadia (12 jogos: 4 vitórias, 2 empates e 6 derrotas)
"Fui para o Anadia porque 3-4 treinadores tinham recusado o convite. O clube estava há cerca de quatro meses sem ganhar, uma volta completa sem vencer. Eu não tinha nada a perder, surgiu a Liga 3 e aceitei. Sei que houve muita gente que não quis arriscar, e foi por isso que me chamaram. Nos 2-3 primeiros jogos, as coisas não correram bem, mas nas últimas 8 jornadas tivemos apenas duas derrotas. Fizemos um percurso muito interessante e garantimos a manutenção na última jornada, algo que parecia impensável. Terminei o percurso no Anadia e surgiram 2-3 oportunidades na Liga 3. Em dois desses projetos, estava praticamente certo, mas, à última hora, optaram por outro treinador, e, quando dei por mim, já não tinha nada".
IV - São João de Ver (7 jogos: 5 vitórias, 1 empate e 1 derrota)
"No meio daquele impasse após a saída do Anadia, surgiu o São João de Ver, do Campeonato de Portugal, que eu tinha recusado um mês antes. Fui reunir-me com o diretor desportivo e o presidente; tínhamos apenas 3-4 semanas para organizar tudo. Agarrámos o projeto com tudo, com carta branca para escolher os jogadores que entendesse, e conseguimos construir um plantel à nossa imagem. Deixo o São João de Ver em primeiro lugar, com apenas um empate e uma derrota na Taça, onde fomos claramente superiores frente ao Leixões. Mas surgiu o convite do Oliveira do Hospital, da Liga 3. Já tinha falado com o presidente e aceitei o projeto com a condição de que, se surgisse uma oportunidade de patamar superior, ele me deixaria sair. Assim foi".
V - Oliveira do Hospital (20 jogos: 7 vitórias, 3 empates e 10 derrotas)
"Foi uma fase difícil. Passámos por muitas dificuldades, com um grande problema envolvendo a SAD e os investidores. As pessoas do clube foram extremamente importantes, juntamente com o Rodrigo Pestana, que entrou mais tarde. Chegámos a um ponto em que muita gente deixou de acreditar, devido às dificuldades. Creio que foi a união das pessoas do clube, com destaque para o presidente Mário Brito, uma das melhores pessoas que conheci no futebol, que fez a diferença. Tivemos uma reta final fantástica. Nos últimos oito jogos em casa, só perdemos um. Conquistámos a manutenção em casa, o que foi extremamente gratificante".
"Houve um momento de clique no jogo contra Académica, e, no final do jogo, responsabilizei os meus jogadores. Gerou-se alguma polémica, mas foi a estratégia que encontrei. Sentia que eles não estavam focados e envolvidos no objetivo, e só com muita dedicação, vontade e ambição é que conseguimos. A partir daí, mudaram a mentalidade e foram os grandes obreiros desta conquista. As pessoas da cidade foram fantásticas, a direção apoiou-nos, e terminámos em grande".
VI - Académica (7 jogos: 2 vitórias, 3 empates e 2 derrotas)
"Reuni-me com 3-4 clubes da Liga 3 e recebi duas abordagens da Liga 2, além de uma proposta da Académica. Quando comecei a minha carreira como treinador principal, disse que um dia iria treinar a Académica. A minha passagem como adjunto não tinha sido feliz, mas aceitei ser treinador da Académica em apenas 10 minutos, numa reunião com o David Caiado (diretor desportivo), sem sequer saber o orçamento da equipa técnica ou dos jogadores. Era um desejo antigo. Aceitei o desafio e comuniquei aos clubes com quem estava em negociações que já tinha dado a minha palavra (à Académica)".
"Não considero que as coisas tenham corrido mal na Académica"
- A passagem pela Académica ainda está muito fresca na memória (saída a 17 de setembro de 2024), por isso pergunto-lhe se custou ainda mais por ter sido um projeto muito desejado por si e não ter corrido da maneira que queria?
- Muito honestamente, não considero que as coisas tenham corrido mal na Académica. Tivemos duas derrotas em sete jogos: uma contra o Sporting B, em Alcochete, e outra contra o Atlético, que depois fez uma série de vitórias. A oito dias de começar o campeonato, tinha apenas 12-13 jogadores, o que nos condicionou muito. Fizemos uma pré-época praticamente sem treinos; jogávamos à quarta-feira, recuperávamos na quinta e na sexta. Esses 11 jogadores tinham de jogar ao sábado.
No último jogo de preparação, foi comunicado que o Stitch ia sair. Passado dois jogos, na 2.ª jornada, foi comunicado que o Diogo Amaro também ia sair, lateral e central. Na 4.ª jornada, para o jogo com o Sporting B, no dia do jogo, o Perea não apareceu à concentração e foi vendido para a Bulgária. Tínhamos planeado o jogo com ele, ia ser importante porque tinha características específicas – foi um excelente profissional até à sua saída – e isso condicionou-nos. Os jogadores chegavam a conta-gotas; o Elvis lesionou-se, o Duarte também, e, quando finalmente tivemos o plantel completo, usufruí apenas de dois treinos.
- Muitas contrariedades...
- A pré-época foi muito difícil, e o esforço do David Caiado foi enorme. Uma coisa é a maneira como olhamos para a Académica como um clube histórico; temos a ideia de que os jogadores querem jogar na Académica, mas hoje em dia, jogadores de 20 anos, do Brasil ou do Paraguai, por uma questão de 300-400 euros, preferem ir para outro clube. A aquisição de jogadores foi difícil, e o trabalho do Caiado foi fantástico; ele trabalhava 24 horas por dia a criar estratégias para cativar jogadores.
As coisas não correram de forma perfeita, longe disso, mas não considero que tenham corrido mal. Optámos por sair porque havia muita contestação, mais do que o normal para uma equipa que estava a dois pontos do objetivo e a quatro pontos do 2.º classificado, sabendo todos as dificuldades que tivemos. Não quero falar muito sobre isso, mas entendemos que era o melhor para toda a gente, especialmente para a direção e para os jogadores. Queria sair com uma vitória sobre o Atlético, mas não conseguimos.
- Quer dizer que já tinha a decisão tomada antes do último jogo contra o Atlético (1-3)?
- Sim, já estava pensada. Existia muita contestação, fora do normal. Agora, também tenho a noção e a consciência de que colocámos em risco as nossas carreiras. Na Académica, nas últimas 10 épocas, o António Barbosa é o 25.º treinador. Dos 25, apenas três iniciaram e terminaram o seu trabalho: um foi o Costinha, outro o Tiago Moutinho e outro o Rui Borges.
Sabíamos que estávamos a colocar a nossa carreira em risco, mas vínhamos de cinco sucessos em cinco projetos. Não correu como pretendido, mas gostei muito da experiência. Saí com uma excelente relação com a direção e com o diretor David Caiado, que é dos melhores com quem trabalhei, com uma competência fora do normal para a Liga 3. Saímos em bons termos, tanto com os jogadores como com todos os departamentos, mas entendemos que era melhor sair da Académica.
- Ainda não se arrependeu da decisão?
- Não me arrependo de nada, mas não era uma equipa técnica feliz. Não estava agarrado ao lugar; sou muito agradecido às pessoas da Académica que me deram a oportunidade de trabalhar num clube histórico. Estou muito grato e respeito quem nos contestava. Eles não gostavam do treinador Pedro Machado, e aceito isso.
- Que impacto é que acredita que pode ter no seu futuro?
- Se voltasse atrás, assinava pela Académica. Não me arrependo de nada, nem de ter assinado, nem de ter saído. Todas estas vivências acrescentam algo, e olho para isso dessa forma. Foi uma experiência enriquecedora; aprendi e evoluí muito. Perceber e fazer uma análise sobre onde temos de melhorar e aprimorar é fundamental. Vejo isso dessa maneira. Acho que foi uma gestão de carreira normal e até inteligente, por isso não mudava nada.
Se há quatro meses éramos uma equipa de sucesso, neste momento não podemos dizer que esta passagem pela Académica, com duas derrotas em sete jogos, seja um insucesso. Nos últimos 11 jogos, só tenho duas derrotas na Liga 3. Às vezes parece que tudo está mal quando, na verdade, não está.
"Tenho sido valorizado pelo meu caráter"
- Para quem não o conhece, como apresenta a ideia do treinador Pedro Machado?
- O treinador e as ideias são os mesmos, mas por vezes temos de ser mais práticos e pragmáticos, em função dos contextos. Por exemplo, passei do São João de Ver, onde éramos a equipa com mais posse, para uma equipa do Oliveira que estava ansiosa. Isso tem tudo influência.
Mas, num mundo ideal, diria que gosto de uma equipa com muita posse de bola. Não sou adepto da posse pela posse. Se puder fazer um golo em três passes, não vou fazê-lo em 22. Agora, se tiver de fazer 22 passes para desmontar o adversário, quero que a equipa seja capaz de o fazer. Gosto muito de valorizar o jogador. Por onde passei, até na Académica, consegui valorizar e lançar jogadores. E só com bola conseguimos valorizar o jogador. Uma equipa feliz e alegre, com jogadores que tenham liberdade e responsabilidade, é o que procuro. Gosto muito que o jogador se sinta feliz dentro da minha ideia de jogo. Não sou agarrado a sistemas e estruturas. Sou um treinador que gosta de criar dinâmicas e nuances para tirar proveito de cada jogador. Gosto muito que as minhas equipas pressionem alto e que recuperem a bola mais perto da baliza contrária. A atitude tem de ser fortíssima em todos os momentos, e a ambição deve ser constante. Na Académica, não conseguimos ter qualidade de jogo, e isso, sim, deixa-me triste. Os resultados não ditaram nada na Académica, mas, infelizmente, não conseguimos treinar como era necessário.
- No mundo atual, em que os jogadores têm acesso a tudo, quais são os principais desafios de um treinador de futebol? É difícil?
- Não é fácil, mas também não acho que seja tão difícil. Temos de ter sensibilidade. Os jogadores têm acesso a tudo, e temos de modernizar e adaptar-nos a isso. O jogador de futebol gosta de regras, de muita exigência e valoriza o profissionalismo. (...) Temos 25 jogadores, com 25 empresários diferentes, 50 pais, 120 primos e 340 amigos, e todos acham que devem jogar, o que não é fácil. Nunca tive um problema com um jogador. Houve desacordos, mas tomei decisões que tive de tomar. Valorizo a frontalidade e a verdade. O jogador de futebol valoriza isso, não gosta do treinador que mente, que vê fantasmas e cria conflitos. O jogador de futebol é extremamente inteligente, conhece treino e jogo. Estamos a ser avaliados por 25 mentes diferentes, em que todos conhecem o jogo.
Há duas palavras que eliminam 90% dos problemas: verdade e frontalidade. Os meus jogadores sabem que a verdade é valorizada e sou respeitado por isso. Pode haver jogadores que não gostem do Pedro Machado no treino, na estratégia ou na tática, mas nenhum jogador pode dizer que não fui verdadeiro e que não tive caráter. Acho que tenho sido valorizado por isso.
- Ouvimos cada vez mais a falarem da qualidade do treinador português. É um meio também muito competitivo, não é verdade?
- É muito competitivo, e muitas vezes não é ético, e isso já é diferente. Ser competitivo é bom, ter ambição é bom, mas transformar ambição em ganância já não é aceitável. Há muitos treinadores em Portugal com muita qualidade. Agora, acho que não devia valer tudo para conseguirmos chegar onde queremos. Na classe, deveria existir mais respeito, respeitando quem está a trabalhar e demonstrando competência quando se tem a oportunidade num clube que oferece a chance de trabalhar. Não tenho conflitos com nenhum treinador. Devemos ser sérios, e não deve valer tudo.
"Sou um treinador à espera do projeto certo"
- Sobre o futuro. Já sente saudades? Tem sofrido muito por estar de fora?
- Ainda não senti isso. Estou a ter outros prazeres que não tive nos outros anos. Levar e buscar os meus filhos à escola não tem preço. Fiz férias, algo que já não fazia há muito tempo. Estou a aproveitar para dedicar tempo ao que não conseguia antes. Muitas vezes, o futebol retira isso, e o pior sentimento que um pai pode ter é o de ter falhado no papel de pai. Estou a tentar compensar os meus filhos pela ausência que lhes proporcionámos.
- Mas acredito que pense no futuro...
- Não sou um treinador de divisões; sou um treinador de um projeto que me cative e que ache ser o projeto certo para continuar a ter sucesso e dar seguimento a uma carreira de sucesso como principal. Sou jovem, mas tenho uma carreira bonita, com experiência em formação e em todas as divisões. Sou um treinador à espera do projeto certo. Estou calmo e tranquilo, muito consciente do que quero, e não me vou precipitar. Quero um projeto que me identifique e que ache que é o projeto certo.
- Considera a possibilidade de ir para o estrangeiro?
- Sim, sim. Gostava de ser treinador no estrangeiro um dia e conhecer várias realidades; não escondo isso.
- Por fim, qual a sua opinião sobre futebol português. Acha que temos um bom produto no nosso país?
- Acho que sim. Só precisamos de olhar para a quantidade de jogadores portugueses espalhados pelo mundo, treinadores portugueses em todo o lado e diretores desportivos a terem muito sucesso. As estruturas são fortíssimas; há muita competência e qualidade, e trabalha-se muito bem. A liga e a FPF trabalham muito bem, e a visibilidade que os órgãos dão é fantástica. O resultado disso é que vemos um país tão pequeno a ter sucesso e a conquistar tudo por esse mundo fora.