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FlashFocus: Lucescu quer cumprir último sonho no fim de uma carreira de troféus, talento e traições

Dan Vasiliu
Mircea Lucescu no primeiro treino oficial da seleção nacional romena
Mircea Lucescu no primeiro treino oficial da seleção nacional romenaProfimedia
Após 38 anos, Mircea Lucescu volta a estar no banco de suplentes num jogo oficial da seleção romena, que inicia a sua campanha na Liga das Nações na sexta-feira, fora de casa contra o Kosovo. Na sua primeira passagem, na década de 1980, quando a Roménia ainda estava atrás da Cortina de Ferro, qualificou pela primeira vez a seleção para um Europeu, o França-1984. Agora, numa altura em que o futebol romeno está em declínio há anos, tem uma tarefa extremamente difícil: qualificar-se para um Campeonato do Mundo após 28 anos de espera.

Acompanhe aqui as incidências do encontro

Num ranking dos treinadores mais bem sucedidos de todos os tempos, Mircea Lucescu está em terceiro lugar, com 35 troféus conquistados, atrás apenas de Sir Alex Ferguson e Pep Guardiola.

"Na verdade, são 37", sublinha sempre, considerando que as promoções conquistadas com o Brescia e o Corvinul Hunedoara devem ser tidas em conta, porque vieram na sequência da conquista dos respetivos campeonatos, mesmo que tenham sido apenas vice-campeões. É a prova do orgulho de um treinador que sempre viveu para a competição e para quem o legado que deixa não é indiferente, no alto dos seus 79 anos.

A carreira de treinador de Mircea Lucescu começou na década de 1980, quando assumiu o comando do Corvin Hunedoara, uma equipa em que jogava há dois anos, mas que tinha sido despromovida à segunda divisão da Roménia comunista.

Defensor de um futebol ofensivo, Lucescu não teve medo de apostar nos jovens e, no espaço de apenas dois anos, levou o Corvin da Liga 2 à Taça UEFA, terminando em terceiro lugar na época de 1980/81, à frente do poderoso Steaua Bucareste.

O desempenho não passou despercebido e, paralelamente ao clube que já orientava, foi-lhe atribuído o cargo de selecionador nacional da Roménia.

Neste cargo, promoveu Gheorghe Hagi, atualmente considerado o melhor jogador da história do futebol romeno, à equipa principal.

"Ele ajudou-me na minha carreira como desportista e futebolista através dessa promoção aos 18 anos, pois levou-me dos juniores diretamente para a equipa principal sem que eu tivesse de passar um único minuto na equipa de juniores. Agradeço-lhe por isso, pois acelerou a minha formação, deu-me coragem e confiança na minha carreira futebolística. Não sei o que ele viu em mim, mas isso é o que significa um grande treinador", disse Hagi sobre o homem que não só lhe deu a oportunidade de estrear na seleção, como também colocou a braçadeira de capitão no seu braço em determinado momento.

O descobridor de talentos

Gheorghe Hagi foi um dos primeiros de uma longa série de jovens jogadores a ser aperfeiçoado pela mão hábil de Mircea Lucescu. No início dos anos 90, após a queda do regime comunista, o Ocidente abriu as portas a uma vaga de talentos que, até então, só tinham podido atuar atrás da Cortina de Ferro.

Entre os que partiram estava Mircea Lucescu e, entre os nomes que de uma forma ou de outra deixou a sua marca, destaca-se um em particular: Andrea Pirlo, que com apenas 15 anos foi promovido à equipa principal do Brescia e um ano mais tarde recebeu os primeiros minutos na Serie A, graças ao homem que já tinha ganho a alcunha de "Il Luce" (A Luz) em Itália.

"Eu tinha 15 anos, ele tirou-me da equipa de juniores e fez-me treinar com a equipa principal. Os jogadores de 30 anos ficavam incomodados com o facto de um rapaz estar no seu caminho e muitas vezes ficavam muito nervosos", revelou Pirlo no seu livro "I Think, Therefore I Play".

"A primeira coisa que Lucescu me disse foi: 'Joga como sempre'. Fi-lo e nem toda a gente gostou. Uma vez driblei um dos veteranos três vezes seguidas, mas a quarta tentativa foi fatal. Ele derrubou-me com um terrível pontapé no tornozelo. Lucescu ficou satisfeito: "Muito bem, ótimo. Tenta passar por ele outra vez,", recordou Pirlo sobre os momentos que passou com o treinador romeno.

"Para além de ser um jogador criativo, era uma pessoa que organizava tudo, o que é outra competência. Ele chamou-me mestre? Isso deixa-me orgulhoso. Tenho de lhe agradecer!", foi a resposta de Lucescu numa entrevista ao portal da UEFA.

A grande transformação

Em 2000, Mircea Lucescu assinou pelo Galatasaray, vencedor da Taça UEFA, onde reencontrou Gheorghe Hagi e juntos venceram a Supertaça Europeia contra o Real Madrid.

Na altura, o Galatasaray era uma presença constante nas fases avançadas da Liga dos Campeões, mas depois de Lucescu ter conquistado o seu primeiro título, foi despedido e cometeu um ato de traição ao assinar de imediato pelo rival Beșiktaș, a quem trouxe o título no ano de centenário do clube com um recorde de 85 pontos.

Mas o maior período da sua carreira foi passado, de forma algo surpreendente, na Ucrânia, assinando em 2004 com o Shakhtar Donetsk, que conseguiu transformar, ao longo de 12 anos, de uma equipa de cidade mineira numa potência continental.

Lucescu pôde contar com o apoio financeiro bilionário Rinet Ahmetov, mas atrair jogadores de classe mundial para o leste da Ucrânia não era fácil. Por isso, Lucescu fez o que fazia de melhor: promoveu jovens promissores e virou atenção para o Brasil.

Mircea Lucescu foi com os jogadores a uma das minas da região de Donetsk
Mircea Lucescu foi com os jogadores a uma das minas da região de DonetskProfimedia

Willian chegou à Ucrânia graças a Il Luce quando tinha 19 anos e, ao fim de 6 anos, foi vendido por 35 milhões de euros ao Anzhi. Meio ano depois, em 2013, chegou ao Chelsea tornando-se numa das estrelas da Premier League. O mesmo aconteceu com Fernandinho, outro brasileiro levado por Lucescu com apenas 20 anos do seu país natal, que acabou por custar quase 40 milhões de euros quando foi vendido ao Manchester City.

Alex Teixeira, Douglas Costa e Luiz Adriano são outros jogadores brasileiros que, uma vez nas mãos do romeno no Shakhtar, evoluíram enormemente e passaram a jogar em grandes clubes europeus.

A traição final

Depois de oito campeonatos, cinco Taças da Ucrânia e uma Taça UEFA com o Shakhtar, Lucescu deixou a Ucrânia, mas após duas breves passagens pelo Zenit de São Petersburgo e pela seleção turca, optou por regressar, mas não ao local onde era uma lenda viva a nível de clubes, mas ao arquirrival Dínamo de Kiev.

Mircea Lucescu, o proprietário Rinat Ahmetov e o capitão Darijo Srna com o troféu da Taça UEFA
Mircea Lucescu, o proprietário Rinat Ahmetov e o capitão Darijo Srna com o troféu da Taça UEFAIbrahim Usta via Profimedia

Os 12 anos no Shakhtar, durante os quais lançou ataques mordazes ao grande rival, incluindo ao treinador Valeri Lobanovski (cujo sexto lugar numa classificação da France Football dos melhores treinadores de todos os tempos contestou, dizendo que fora da Ucrânia ele não representava nada), não podiam ser apagados da memória dos adeptos do Dínamo.

"A escolha de um treinador de 74 anos, que se manifestou regularmente contra o Dínamo, é inaceitável", escreveram em comunicado. "Apelamos a todos os funcionários do clube que ainda têm algum respeito para se demitirem".

A pressão atingiu níveis tão tensos que Lucescu quis demitir-se apenas quatro dias depois de assinar contrato, mas o proprietário Igor Surkis convenceu-o a ficar: "Os sentimentos de alguns adeptos não podem ser um fator determinante no futuro deste clube", disse-lhe numa carta.

Mircea Lucescu numa conferência de imprensa do Dínamo de Kiev
Mircea Lucescu numa conferência de imprensa do Dínamo de KievPavlo Bahmut / NurPhoto / NurPhoto via AFP

O primeiro jogo do campeonato foi disputado à porta fechada, mas os adeptos conseguiram furar o bloqueio e invadiram o relvado, exigindo a saída do treinador romeno, que decidiu viver no centro de treinos do clube para evitar encontros indesejados com os adeptos nas ruas da cidade.

"O futebol é a minha vida e fiquei em casa durante um longo ano. Sentia muito a falta do futebol. Não podia recusar uma oferta destas", disse Lucescu numa entrevista ao Tuttosport, na qual tentou justificar a sua escolha.

"Não sou cobarde"

Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, o futebol passou inevitavelmente para segundo plano. A embaixada romena insistiu com o treinador para que abandonasse o país, mas ele recusou sempre.

"Como é que posso sair? Não sou cobarde, não me fui embora nem mesmo quando a loucura começou em Donetsk, em 2014. Não posso fazer isso. Daria um exemplo negativo a toda a gente, de medo, de pânico, de falta de fiabilidade. Como é que eu poderia fazer isso?", disse Mircea Lucescu nessa altura.

Acabou por fazê-lo depois de uma derrota por 1-0 no dérbi com o Shakhtar, altura em que também anunciou a sua retirada do futebol.

"Dediquei 15 anos ao futebol na Ucrânia. Foi assim que decidi terminar a minha carreira. Foi o último jogo. Despedi-me dos meus jogadores, dos jogadores do Shakhtar. Obrigado a todos. Gostaria de ter terminado de outra forma, mas tudo chega ao fim. Tudo tem um princípio e um fim", disse Lucescu no final do jogo.

"Mas, não me enterrem ainda", rematou dias depois da reforma, um sinal de que não iria fechar a porta do futebol para sempre.

Determinado a atuar como sempre fez ao longo de uma carreira impressionante, Lucescu poderá agora escrever uma nova página na história se conseguir levar a seleção romena ao Campeonato do Mundo que será disputado nos EUA, México e Canadá, aceitando finalmente a oferta feita pela Federação Romena de Futebol.

Se a missão for cumprida, Il Luce terá 81 anos e, em 2026, poderá tornar-se o mais velho selecionador de sempre de um Campeonato do Mundo.

Mircea Lucescu e o Presidente da Federação Romena de Futebol, Răzvan Burleanu
Mircea Lucescu e o Presidente da Federação Romena de Futebol, Răzvan BurleanuProfimedia

"Para dizer a verdade, fiz tudo o que estava ao meu alcance para não ir para a seleção. Era normal dar aos jovens treinadores a oportunidade de seguir em frente. Também não preciso de correr riscos e sei que estou a arriscar muito, mas acho que o futebol romeno vale o risco", disse depois de ser nomeado parao cargo, há cerca de um mês.

"Só uma coisa me dá determinação: o meu amor pelo futebol e a minha obrigação para com o futebol romeno. Mas, em tudo isto, há que lembrar uma coisa: eu não era cobarde", apontou.