Júnior Moraes interrompe carreira para promover paz na Ucrânia: "Acordava desesperado, a chorar"
Desde o regresso, Júnior Moraes tem sido uma das vozes que clama pelo fim da guerra na Ucrânia. O jogador chegou a doar cerca de R$ 300 mil (48.9 mil euros) em apoio às vítimas do país invadido.
Em entrevista exclusiva ao Flashscore, o avançado revelou que prepara a sua despedida do futebol, mas interrompeu os planos para se dedicar à nação que o acolheu. "Deixei o meu projeto pessoal de lado para me ocupar de uma causa maior, que é promover a paz na Ucrânia", afirma.
Os líderes das maiores economias do mundo vão reunir-se em 18 e 19 de novembro, no Rio de Janeiro, para um encontro do G20. Os presidentes da Ucrânia — Volodymyr Zelensky — e da Rússia — Vladimir Putin — não estarão presentes, mas Júnior Moraes espera que a cúpula avance em prol do fim da guerra.
"A paz não deveria ser nem discutida. A única coisa que a Ucrânia quer é poder viver em paz. A Ucrânia em nenhum momento invadiu algum território da Rússia ou faltou ao respeito. A Ucrânia quer viver livre. E isso precisa ser o interesse de todos os países, precisa ter uma comoção maior", destaca.
"No dia de hoje não cabe mais guerra. E se o G20 não se atentar a isso, amanhã são os outros países que vão estar a ser ameaçados de guerra, de invasão, por qualquer outro motivo. O nosso apelo a promover a paz é de extrema importância para que o mundo entenda".
"Tensão e pânico"
Júnior Moraes construiu uma carreira de sucesso na Ucrânia. Após se destacar por Metalurh Donetsk e Dínamo de Kiev, o avançado revelado pelo Santos chegou ao Shakhtar Donetsk, onde atingiu seu auge.
Ele foi duas vezes melhor marcador do Campeonato Ucraniano e bicampeão nacional nas primeiras temporadas pelo Shakhtar, em 2018/19 e 2019/20. Quando estava no seu quarto ano no clube, veio a invasão da Rússia.
"Acordei às 05:00 da manhã com ataques e explosões perto do meu apartamento. A janela do quarto era toda de vidro, então deu para ver aquele clarão forte. Fiquei muito assustado, e aí o prédio começou a tremer. O que você faz? Vai para a rua e talvez seja atingido por um míssil? Fica dentro do apartamento, onde também pode cair uma bomba? Foram dias de muita tensão e pânico. Situação de horror, cena de filme de fim do mundo", recorda Moraes.
A guerra na Ucrânia começou em 24 de fevereiro de 2022. Os jogadores brasileiros no local uniram-se para escapar do conflito com seus familiares, e começaram a desembarcar no Brasil a 1 de março.
"Foi uma corrida contra o tempo para tirar aquelas 41 pessoas que estavam comigo. Tinha recém-nascido, bebês, crianças, idosos. E era um frio extremo, época de inverno, escassez de alimentação, ameaça de acabar água e comunicação", conta o jogador.
Trauma pós-guerra
Pouco depois de deixar a Ucrânia, Júnior Moraes acertou a sua transferência para o Corinthians. O avançado estava convicto de que mostraria seu nível no futebol brasileiro, mas a guerra continuou a atormentá-lo mesmo longe da Ucrânia.
"Na minha cabeça eu tinha saído da zona de risco, estava com a minha família, ia jogar futebol e, através do meu sucesso, promover a paz na Ucrânia. E quando chego aqui, começo a viver um trauma pós-guerra, por ter ficado aqueles quatro dias sem dormir, a cabeça em alerta, tentando achar uma forma de sair", explica.
"Comecei a ter pesadelos do meu filho na guerra, caindo míssil perto da nós, e eu com ele nos braços, correndo e pedindo ajuda. Eu acordava desesperado, a chorar, com a cama encharcada de suor. E a partir daí não conseguia mais dormir, mesmo tomando medicação", revela Moraes.
"Comecei a ter calafrio e febre nos pós-treinos no Corinthians por conta da imunidade baixa, mas mesmo assim eu queria continuar. A minha vida toda foi feita de superação. Eu acreditava que era mais uma dificuldade ali no momento, e que ia passar, eu ia começar a jogar de novo e ia dar tudo certo".
O atleta iniciou uma terapia intensiva com um psicólogo para lidar melhor com o momento caótico que envolvia trauma pós-guerra, pressão no clube e frustração com o próprio desempenho. Mas o corpo paralisou Moraes.
"Aí começaram as alergias, o meu rosto começou a inchar, joelho... O meu corpo começou a gritar de várias formas e eu não entendia. Recuperava tomando muito corticoide e antibiótico, queria ir de novo, e acontecia de novo. Tive mais de sete reações alérgicas em menos de dois meses. Quando acabou o ano (2022) tive um tempo para respirar, pensei que ia voltar bem, mas na verdade eu precisava mesmo parar e ter um descanso", relembra.
"Eu não estava a conseguir cuidar nem da minha família, dos meus filhos, da minha esposa. Estava a precisar de cuidado, então decidi ter o meu tempo de recuperação, de cuidar de mim. Foi um processo muito difícil, mas em que aprendi muito. Levantei e falei: 'Cara, eu não sou um super-herói'".
Vínculo com Ucrânia
Júnior Moraes disputou 11 jogos pela seleção da Ucrânia e marcou um golo. O avançado vinha sendo convocado por Andriy Shevchenko meses antes do Euro 2021, mas uma grave lesão no joelho afastou-o do torneio.
O vínculo forte com o país mantém-se até hoje. Moraes chegou a atuar pela seleção ucraniana na Kings World Cup 2024, torneio de futebol de sete organizado por Gerard Piqué.
"Tenho contato com as pessoas por lá diariamente. E é bem triste, as histórias são muito pesadas. Você deixa os seus filhos na escola e vai para o trabalho, mas não sabe se vai conseguir voltar para buscá-los, se a escola vai ser atacada por um míssil. São notícias diárias de amigos que morrem, de pessoas que por pouco conseguiram se salvar, perdem parte do corpo", lamenta.
"Se falar do que essa guerra vai trazer de trauma para quem está a vivê-la e para gerações que vão vir no futuro, é muito grande. E se o mundo não se preocupar ao que está a acontecer na Ucrânia, amanhã pode ser com o nosso país, com qualquer outro. Porque a Ucrânia já se julgava um país livre, e de repente se vê em uma situação como essa", completa.
Chamado para guerra?
No início do conflito, especulou-se no Brasil que Júnior Moraes poderia ser convocado para a guerra. Uma medida do governo Zelensky proibia cidadãos ucranianos do sexo masculino de deixarem o país, inclusive os naturalizados, para ficarem à disposição do Exército. Segundo o jogador, porém, a notícia era "totalmente falsa".
"Em nenhum momento eu ou outros atletas fomos convocados para a guerra. Isso não passava pela minha cabeça nem dos outros atletas ucranianos. E isso abalou-me muito, porque eu ficava a imaginar como as pessoas iriam reagir ao lerem essa notícia", esclarece.
"A forma mais poderosa que eu e outros atletas temos de ajudar a Ucrânia é promover a paz. O meu relacionamento com o país, o governo e as pessoas é maravilhoso. Estou diariamente conectado com as ações de poder ajudar ao máximo a acabar com essa atrocidade que está a ser essa guerra", ressalta.