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Angeline da Costa: "Somos a referência e a imagem do Valadares Gaia"

Rodrigo Coimbra
Angeline da Costa em destaque no Valadares Gaia
Angeline da Costa em destaque no Valadares GaiaValadares Gaia, Flashscore
O Flash Feminino é a nova rubrica quinzenal do Flashscore, dedicada a destacar as principais protagonistas da Liga Feminina. Neste espaço, traremos entrevistas exclusivas com as jogadoras que brilham nos relvados nacionais. A nossa quarta convidada é Angeline da Costa, média do Valadares Gaia.

Acompanhe o Valadares Gaia no Flashscore

"Os rapazes defendiam-me sempre"

- Nasceu em Montauban (França), mas as suas raízes a Portugal são muito fortes. O seu pai nasceu em Vila Verde (distrito de Braga) e a mãe em Amarante. Explique-nos essa ligação.

- Eu nasci em França, é verdade, mas sempre senti uma ligação forte com Portugal. Eu vinha muitas vezes de férias a Portugal e os meus avós viviam seis meses em França e seis meses em Portugal. Quando havia jantares de família na casa deles, era sempre num ambiente de cultura portuguesa.

- E como aparece o futebol na sua vida?

- Ganhei o gosto pelo futebol muito cedo. O meu irmão jogava, o meu pai também, e eu estava sempre na bancada a brincar sozinha com uma bola. Um dia, o treinador dos mais pequenos veio falar comigo: 'Rapariga, queres treinar connosco?'. Pedi à minha mãe, e ela disse que eu estava à vontade. Fui, experimentei, e depois do treino disse à minha mãe que queria voltar. Tinha três anos e meio, nem sequer tinha idade para jogar. Mas como era um clube numa aldeia, estava super tranquila. Só treinava, não fazia jogo nenhum porque não tinha autorização por causa da idade, nem sequer tinha chuteiras do meu tamanho (risos). Depois, com o tempo, comecei a jogar e a jogar com os rapazes.

Angeline esteve num centro de alto rendimento em França
Angeline esteve num centro de alto rendimento em FrançaValadares Gaia/Opta by Stats Perform

- Como era a ligação com os rapazes?

- Estive em várias equipas e sempre me trataram muito bem. Defendiam-me sempre, mas eu também tinha de defender-me com o meu rendimento. Não havia desculpas, eu tinha de render. O adversário estava sempre a gozar por termos uma rapariga na equipa, por isso eu tinha de mostrar o meu valor. Dava um encosto e, depois, deixavam de falar essas coisas.

- A Angeline sabia que um dia teria de deixar de jogar com rapazes. Foi difícil esse processo?

- Joguei com os rapazes até aos 14 anos e, depois, a transição foi muito rápida. Entrei num centro de alto rendimento em França, fiz várias captações e cheguei a entrar em Paris num centro de alto rendimento. Foi ali que o meu sonho começou. Treinava duas vezes por dia, e tudo à volta era organizado em função do alto rendimento, desde a escola até à saúde. Fiquei triste por deixar de jogar com os rapazes, porque gostava muito da velocidade do jogo, mas como ia começar a realizar o meu sonho, isso ajudou-me no processo.

- Acaba por estrear-se na liga francesa com 14 anos, sendo, na altura, a mais jovem de sempre a jogar na competição. Tinha noção do que estava a viver?

- Foi incrível e tudo aconteceu muito rápido. Estava a jogar com as sub-19 e houve falta de jogadoras (na equipa principal) devido a lesões. O treinador chamou-me para a primeira equipa, nem pensei duas vezes. Sou muito competitiva e nem tive tempo de aproveitar. Só pensava em jogar e depois só pensava em lutar para estar sempre no 11 inicial. Não tinha bem noção do que estava a acontecer. Os meus pais diziam que eu tinha muita sorte e que devia aproveitar, mas eu estava sempre a olhar para a frente e não tive tempo de desfrutar o momento.

- Naquela altura ainda não tinha contrato profissional...

- Sabia que havia poucos clubes a oferecer contratos profissionais em França, mas esse era o meu sonho. Queria muito, mas sabia que tinha de trabalhar bastante e esperar por uma oportunidade. Havia o PSG, o Lyon e o Montpellier, e era muito, muito difícil. Eu estava a jogar, e, com 18 anos, surgiu uma proposta de contrato profissional para jogar no estrangeiro. Nem pensei por um segundo. Fui falar com os meus professores da universidade para ver se dava para fazer o curso online e disseram que sim. E assim fui para os Países Baixos.

- Como correu essa experiência?

- Foi uma passagem muito boa, embora muito curta, de apenas seis meses. Cheguei lá, adaptei-me à cultura e à língua. O meu inglês era péssimo... Mas foi uma experiência muito positiva. A nível humano, era um país completamente diferente, e descobri uma nova forma de treinar e jogar. Abriu muito a minha mente.

Valadares Gaia é o segundo clube de Angeline em Portugal
Valadares Gaia é o segundo clube de Angeline em PortugalArquivo Pessoal

"Queria ser uma verdadeira portuguesa"

- Acaba por regressar a França e depois surge o convite do Torreense. Explique-nos como tudo aconteceu...

- Saí dos Países Baixos e voltei para a primeira divisão (francesa), com um treinador que já me conhecia. Tive alguns minutos no primeiro ano, mas no segundo ano queria mais – queria ser titular – então fui para a segunda divisão. Durante a pandemia, o campeonato parou, e quando o telefone tocou (com proposta do Torreense) foi um alívio. Eu só queria jogar, não aguentava mais ficar em casa. Tinha planeado jogar em Portugal, queria acostumar-me mais à cultura e à língua. Ia para a Seleção e não falava português, o que deixava-me muito chateada. O plano era acabar os estudos e vir. Queria ser uma verdadeira portuguesa, simplesmente. Quando o telemóvel tocou, fiquei super feliz. Vi a proposta e disse: é agora.

- Realidades diferentes, não é verdade?

- Percebi que a realidade era completamente diferente de França, mais complicada a nível de infraestruturas e da organização dos clubes. Basicamente, reflete o que o país está a viver. Mas há coisas muito boas em Portugal que eu adoro: o estilo de vida e as pessoas. Em relação ao modelo de jogo, deixa-me feliz, porque sou uma jogadora que gosta de ter a bola e, em Portugal, posso aproveitar mais a minha qualidade e jogar com mais liberdade.

- Quais as principais diferenças? O que a surpreendeu mais?

- Diria que as condições de treino eram diferentes. Estava habituada a treinar de manhã ou no início da tarde, e quando cheguei, treinávamos à noite, ao final do dia. As condições de treino não eram as melhores; treinávamos num sintético que não tinha relva nenhuma. Depois, faltava muito material... A equipa técnica era mais alargada do que a que tinha em França, mas em França tínhamos acesso a fisioterapia. Aqui, quando tinha uma lesão, o fisioterapeuta só vinha à hora do treino e só aí podia ser tratada. Além disso, fora do futebol, havia a questão de partilhar casa. Em França, tinha o meu próprio apartamento e aqui tive de partilhar. São coisas pequenas, mas que têm impacto no dia a dia da jogadora.

Valadares segue na 5.ª posição da tabela
Valadares segue na 5.ª posição da tabelaFlashscore

- Ficou surpreendida com a qualidade da jogadora portuguesa?

- Fiquei muito surpreendida. Tinha noção de que ela tinha muita técnica e achava o futebol francês mais físico. Quando cheguei, demorei a adaptar-me à realidade. O futebol aqui é técnico, mas também tem muita intensidade. Às vezes, há pressão alta e é preciso correr muito. Em França, o jogo é mais posicional, jogado em bloco e à espera do adversário. Aqui, é necessário correr mais e ser mais agressiva.

- Sei que a Angeline não falava português...

- No início, havia uma jogadora que falava francês na minha equipa e ela traduzia para mim. Fiquei assim uns dois meses, enquanto falava inglês com as minhas colegas. Mas, desde que cheguei, comprei um livro que fazia traduções e andava com ele a estudar. No começo, errava muito e todos se riam, mas eu dizia para estarem à vontade comigo e para me corrigirem sempre que fosse preciso.

- Agora, posso dizer que está perfeito! Podemos dizer que já se sente 100% portuguesa?

- (risos) Às vezes, há palavras que eu ainda não percebo. Isso ainda acontece. Os verbos são complicados, mas dá para ter uma conversa.

- A Angeline passou por um período complicado no Torreense (lesão grave no joelho), em que esteve cerca de 10 meses afastada dos relvados. Como foi passar isso longe de casa?

- Quando cheguei ao Torreense, o clube era amador e foi bom participar na evolução. Estive nesse plantel que viu o clube crescer e gostei muito dessa parte. Infelizmente, tive uma queda que resultou numa lesão que me deixou afastada durante muito tempo. Foi um momento difícil, pois estava longe da família e queria voltar para fazer a cirurgia em França. Estava aqui para jogar, mas precisei de mudar o chip para focar na reabilitação. Foi complicado no início.

Também posso dizer que foi um momento muito bom, porque aproveitei os 10 meses para ter um pensamento diferente. Eu era, e ainda sou, uma jogadora muito focada no futebol e organizo a minha vida toda em função dele. Não tinha noção de que precisava de aproveitar os pequenos momentos à minha volta. Por exemplo, tinha quatro dias de férias durante o Natal para ir a casa e só pensava em treinar, sem aproveitar o tempo com a família. Durante o verão, voltava para casa e só pensava na próxima época. Não conseguia aproveitar os pequenos momentos da vida, que são muito bons e permitem ganhar energia para voltar ainda melhor. A lesão foi uma oportunidade para entender que há momentos para trabalhar e outros para aproveitar, para estar fora do futebol e sentir-me feliz fora dessa caixa. Eu precisava mesmo desse momento.

Angeline cumpre segunda temporada no Valadares Gaia
Angeline cumpre segunda temporada no Valadares GaiaFlashscore

"O mundo inteiro está a tentar melhorar o desporto no feminino"

- Seguimos para o Valadares. Como surgiu esse novo capítulo no Valadares?

- Algumas pessoas da equipa técnica já me conheciam. Eu tinha notado uma diferença entre o norte e o sul: no sul, o jogo era mais baseado na posse de bola, enquanto no norte era mais físico. Depois da lesão, eu precisava de treinos intensos e um pouco mais de verticalidade no meu jogo. Estava à procura disso, de outro modelo de jogo, para ter mais capacidades e melhorar o meu desempenho.

- Ou seja, o desafio foi escolhido em função do que era mais adequado para o seu futebol.

- Sim, sim, foi bem pensado. Sabia que o projeto era muito ambicioso. De facto, correu muito bem; fizemos uma boa época e tudo o que estava à procura e precisava de melhorar acabei por melhorar. Foi um ano muito bom para mim.

- O que podem dar esta época?

- Tivemos muitas mudanças no plantel, o que é importante é repetir o que fizemos no ano passado. Estivemos bem, fomos uma equipa competitiva e queremos repetir isso e fazer ainda melhor. Tivemos uma quebra em janeiro ou fevereiro, e este ano queremos superar-nos ainda mais.

- Ainda não perderam, ainda não sofreram golos e a Angeline tem jogado sempre. Como se está a sentir do ponto de vista pessoal?

- Sinto que este ano tenho um papel importante na ligação do jogo. Sou média defensiva, mas gosto de organizar o jogo, defender, recuperar a bola e ser agressiva. Mas, acima de tudo, sou uma jogadora que joga com cabeça. Limpar, organizar e ter uma boa leitura do jogo. São esses os meus objetivos no jogo.

Angeline não esconde ambição
Angeline não esconde ambiçãoValadares Gaia/Opta by Stats Perform

- Mas como se explicam estes três jogos sem sofrer golos?

- Sabemos que, para ganhar, o mais importante é não sofrer golos. Uma equipa que é muito boa e ganha, primeiro defende bem. Todas temos essa noção e a nossa defesa é tão importante quanto o ataque. Quem está à frente também defende e gasta muita energia para ajudar.

- Para quem não conhece, como apresenta o Valadares?

- O clube tem um histórico sólido e está presente no futebol feminino há muitos anos. Sabemos que, quando jogamos pelo Valadares, a equipa feminina tem um papel muito importante. Somos a referência e a imagem do clube. Temos uma responsabilidade significativa. Quando jogamos pelo Valadares, damos a vida dentro de campo. Não podemos falhar na energia e na entrega pelo clube.

- Como tem visto a evolução do feminino em Portugal e no mundo?

- Acho que estamos no bom caminho. A evolução tem sido muito rápida em Portugal. Quando a FPF e os clubes decidiram investir, em três ou quatro anos a Liga tornou-se muito mais competitiva, com clubes e jogadoras a terem melhores condições. Acho que Portugal está a aproveitar a dinâmica mundial. O mundo inteiro está a tentar melhorar o desporto feminino. Demora um pouco, mas, aos poucos, chegamos lá.

- A Angeline cumpre a segunda temporada no Valadares. Aos 24 anos, como imagina o futuro?

- O meu objetivo é dar o salto para um clube profissional. Na minha cabeça, jogar a Champions é um sonho para mim. Vou com calma, mas estou a preparar-me para dar o salto no momento certo.

- Quais sãos as suas perspetivas sobre a nova edição da Liga? Mais competitiva?

- Ainda estou um bocadinho confusa e curiosa. Houve muitas mudanças no verão e eu pensava que as equipas que tiveram muitas alterações não estariam muito preparadas, mas os resultados mostram o contrário. O campeonato parece ainda mais competitivo do que no ano passado, mas ainda é cedo para tirar conclusões definitivas.

Angeline é totalista no Valadares Gaia
Angeline é totalista no Valadares GaiaArquivo Pessoal

"Sinto-me pronta para fazer uma época em cheio e dar o salto"

- Há mais dois capítulos que gostava de abordar com a Angeline. O primeiro são os estudos. Terminou o mestrado recentemente e a questão é se foi fácil conciliar o futebol com os estudos?

- Estudar para mim era muito importante; queria ter o diploma para, quando acabasse a carreira, ter uma possibilidade. Mas foi muito, muito difícil... É complicado explicar o processo. Só a minha família, que acompanhou tudo, tem noção da dificuldade. Eu queria estudar, mas não queria estar presa a um lugar para isso, então estudei online. A estrutura, no entanto, não era nada organizada; dependia sempre da boa vontade dos meus colegas e professores, e foi complicado. Às vezes, esqueciam-se de mim para os testes. Mas agora que acabei, estou muito feliz. Não sei como consegui, mas consegui. Passava horas e horas a estudar e consegui. Isso teve impacto na minha carreira. Foi muito cansativo e em alguns momentos senti falta de energia, mas agora estou feliz porque posso focar-me unicamente na minha carreira.

- Tese sobre preparação física, mental e reabilitação na faculdade de Lyon. Teve de ir lá para defender o seu estudo?

- Fiz a apresentação online em maio, ainda antes de termos terminado a época. Correu muito bem; a tese abordava um assunto que queria tratar há vários anos, desde a minha lesão. Sempre achei que havia uma ligação entre as lesões físicas, psicológicas e emocionais. Queria fazer esse estudo com uma equipa de alto nível, então perguntei à equipa técnica e tive a oportunidade e a sorte de realizar o meu estudo na minha própria equipa. Deu para passar feedback à equipa técnica sobre o meu estudo.

- Finalizada essa etapa, e 100% focada agora no futebol, sente que esta pode ser a sua época de afirmação?

- Acredito que sim. Sinto-me mais madura no meu jogo, tanto fisicamente como psicologicamente. Sinto-me pronta para fazer uma época em cheio e dar o salto.

Angeline representou a seleção sub-23 de Portugal
Angeline representou a seleção sub-23 de PortugalFPF

"Seleção? Está dentro da minha cabeça, não vou mentir..."

- O outro tópico que queria abordar é a Seleção. A Angeline chegou a representar as seleções jovens francesas, mas acabou por optar pela seleção portuguesa. Explique-nos essa mudança.

- Na altura, estava no centro de alto rendimento e jogava pela seleção francesa. Quando saí, recebi uma proposta para ir à seleção portuguesa. Disse aos meus pais que não falava a língua, mas tinha curiosidade e queria experimentar. Fui ao estágio, e, no fim do primeiro jogo, saí do balneário e vi o meu pai e a família do meu pai, que estavam felizes por ver-me com a camisola portuguesa. Foi então que disse ao meu pai que já tinha decidido e que queria jogar por Portugal. Sentia-me bem e parecia que tinha jogado sempre pela Seleção. O meu destino estava com a seleção portuguesa e a minha família ficou muito feliz. Depois, fiz todas as seleções até às sub-23, até à minha lesão.

- Tem como objetivo regressar à Seleção?

- Agora já não tenho idade para ir às sub-23, então o foco é a seleção principal. Sei que é difícil e que é preciso muito trabalho. Está dentro da minha cabeça, não vou mentir. Trabalho diariamente para isso, mas não quero colocar pressão nenhuma. O mais importante é o clube; se tiver a oportunidade de ir à Seleção, será como uma prenda.

Os próximos jogos do Valadares
Os próximos jogos do ValadaresFlashscore

- A família está orgulhosa do seu trajeto?

- Assistem a todos os jogos e apoiaram-me sempre muito. Nunca falharam um jogo em casa em França; em Portugal, ligam a TV e assistem. No final, ligam para perguntar se correu bem. Estar aqui não é um problema para eles; eles gostam de me ver feliz em Portugal. Até estão a pensar em regressar.

- Em algum momento se arrependeu da decisão de ter vindo para Portugal?

- Fazia tudo igual. Vir para cá tornou-me mais competente e completa. Tenho mais minutos, tenho um papel importante e estou inserida num modelo e estilo de jogo que gosto.

- Por fim, o que gostaria que dissessem sobre si e sobre o Valadares Gaia no final da temporada?

- Gostava que as pessoas dissessem que o Valadares foi uma equipa ainda mais competente do que no ano passado, confirmando o que fez. É uma equipa que trabalha bem, com jogadoras de muito potencial e talento.

Em relação a mim, gostaria que vissem que sou uma peça essencial da equipa, um elemento importante na estratégia da equipa técnica, e que tenho sempre regularidade no meu rendimento.

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