Marta Ferreira: "Damaiense ajudou-me a desenvolver coisas que no Sporting não era possível"
O futebol é a paixão de uma vida. Uma vida ainda com tantos capítulos pela frente, mas já com muito para contar. Do "seu" Olímpico do Montijo ao Sporting, dos 60 e muitos golos numa só época à decisão "sensata" de fechar uma história "bonita" para ir em busca de outros estímulos.
Marta é assim. Sempre de sorriso no rosto, de bem com a vida e muito consciente sobre o mundo que a rodeia. A forma como recorda o passado, descreve o presente e projeta o futuro projetam uma maturidade muito maior do que os 21 anos que surgem no Cartão de Cidadão.
Por entre exames da faculdade, o seu "Plano B", a jovem avançada tirou um tempinho para falar sobre a sua grande paixão. Com a mesma facilidade que encara cada adversária no campo.
"Não tinha muito jeito ao início"
- Como o futebol aparece na sua vida?
- Aparece muito cedo. Sempre tive essa paixão. Não me lembro de muita coisa de quando era pequena, mas vejo fotografias e vídeos e andava sempre com uma bola. Jogava na escola com os meus amigos, na maioria rapazes, até que surgiu a oportunidade de ir ao Olímpico do Montijo, com o meu irmão. Ele era um bocado acanhado e precisava de companhia, então eu como era mais extrovertida fui com ele. Nos primeiros anos era muito mais por diversão e paixão.
- A família reagiu bem a essa paixão?
- Tenho muita sorte, porque nasci numa família de desportistas. O meu pai jogou futebol, o meu tio da parte da minha mãe foi jogador profissional de futebol e o meu avô adora e é apaixonado. Até a minha mãe que nunca jogou adora ir aos estádios para ver futebol.
- Quando percebe que tem um jeito especial para a modalidade?
- Nós somos muito marcados pelas pequeninas coisas e lembro-me muito bem do meu primeiro treino. Adorava jogar e confesso que não tinha muito jeito ao início. Nem conseguia fazer um passe direcional (risos). Simplesmente aconteceu. Também quando praticas todos os dias acabas por melhorar. Nos infantis aos iniciados deram-me a braçadeira (de capitã), não sei se pela diferença, mas eu adorava ajudar a equipa e falava muito em campo. Os meus colegas também foram sempre muito queridos e hoje ainda são dos meus melhores amigos.
"Sporting foi um capítulo bonito"
- Depois de vários anos no Olímpico do Montigo, surge a possibilidade de ir para o Sporting. Recorda-se desse momento?
- Recebi o convite um ano antes de ter ingressado, mas optei por ficar mais uma época com os rapazes e sinto que foi uma boa decisão. O Sporting é um dos melhores clubes portugueses e, claro, não podia recusar. Foi um excelente passo para mim, mas era completamente diferente. Era um clube grande e o futebol deixou de ser um hobby para ser mais um trabalho. Não conhecia ninguém, mas como sou uma pessoa muito dada e extrovertida a integração acabou por ser fácil e fiquei lá durante seis anos.
- Quais as principais diferenças?
- A mudança não foi difícil, mas encontrei o oposto em termos técnicos e táticos. No Olímpico do Montijo não tínhamos muita rigidez tática, nem defensiva e ofensiva. Eram mais 11 jogadores individuais a tentar fazer o melhor. E eu chego ao Sporting e é tudo muito organizado. Tínhamos a semana de treinos organizada em aspetos defensivos, aspetos ofensivos, aspetos técnicos e esquemas táticos. Conhecíamos as características e valências de cada uma das nossas colegas. Esse período ajudou-me muito a evoluir.
- Logo na segunda época marca muitos golos. Muitos golos mesmo (48 na equipa B e mais duas dezenas pelas sub-19). Tem ideia de quantos foram no total?
- Não tenho noção dos números exatos, mas foram muitos (risos). Lembro-me que tirei uma foto com o Bruno Fernandes por causa dos golos: "Os médios mais goleadores do Sporting". Sinceramente, nunca pensei muito nisso. Era uma questão de confiança e motivação e eu só queria desfrutar e aproveitar o momento.
- Recorda-se do momento da estreia na equipa principal do Sporting?
- Lembro-me muito bem. Foi contra o Fófó (Futebol Benfica). Já andava a treinar com a equipa sénior desde a pré-época e a professora Susana Cova, que era a treinadora na altura, disse-me que ia ser convocada para esse jogo. Estava nervosa, mas não muito.
- Qual o balanço que faz da sua passagem pelo Sporting?
- Foi um capítulo bonito. Aprendi muitas coisas. Os métodos de trabalho eram muito diferentes e tinha o mister Rodrigo que era muito certinho com os posicionamentos. Evoluí muito taticamente e tecnicamente. Até acho que às vezes era um defeito, porque diziam para fazer X e eu fazia X, ou Y e fazia Y, mas a jogada pedia Y e eu fazia X porque era isso que me pediam. No fundo, foi o crescer num clube grande, onde se trabalha a sério e com muita responsabilidade, sempre com o objetivo de fazer crescer a jogadora da formação.
- Teve a possibilidade de conviver com grandes jogadoras de outras gerações, que tiveram de passar por coisas que a Marta nunca passou no feminino. Como foi essa ligação?
- Não tenho noção de como eram as coisas na altura delas. Eu confesso que também não via muito futebol feminino. Não havia transmissões e não dava para perceber a realidade. Creio que a minha geração apanhou esse ponto de viragem. Lembro-me, por exemplo, de ir à festa do futebol feminino na Cidade do Futebol e de estar lá a Jéssica Silva (Benfica) e a Ana Borges (Sporting). Eu não sabia quem eram (risos). Eu via imensas miúdas a irem ter com elas e eu também fui. Depois lembro-me de contar essa situação à Borges (risso). (...) As jogadoras mais velhas foram muito importantes para a minha integração.
- Acaba por fechar o capítulo Sporting no final da temporada 2021/22. Foi fácil?
- Sou uma pessoa muito sensata e não me arrependo das decisões que tomei. O que fiz tinha de ser feito para o meu crescimento. Fui muito feliz no Sporting, mas queria coisas novas, queria jogar mais e poder errar para evoluir. Também acabei por valorizar a faculdade.
- Quer dizer que partiu de si a decisão de sair?
- Sim, sim. O Sporting queria que eu ficasse e até fizeram um esforço para eu ficar, mas decidi sair.
"Damaiense valoriza muito o futebol feminino"
- Aparece o Damaiense. Que clube é este? Que projeto é este?
- Um projeto muito apelativo. Já no ano passado fizemos uma coisa muito bonita. O treinador era perfeito para o projeto que tínhamos, com excelentes jogadoras portuguesas e estrangeiras. Mas na maioria jovens e portuguesas. Encontrei um futebol de forte reação à perda, alta intensidade, e que era mais de transição, oposto ao que tinha no Sporting. Senti que melhorei coisas que no Sporting não era possível.
Também acho que o Sporting está a mudar um pouco a sua forma de jogar. Já não é só aquela posse de bola, também é de transições rápidas e o futebol é isso mesmo. Não é só uma coisa, nem só outra. Pode haver alguma rigidez tática, mas também tem de existir liberdade.
- Foi isso que encontrou no Damaiense?
- Precisamente. O querer atacar as linhas, procurar rápido a profundidade... Encontrei um projeto muito bonito. O Damaiense vinha da segunda divisão e criou um projeto que valorizou muito o futebol feminino. É muito bom fazer parte deste crescimento e foi mutio bom mantermos as nossas expectativas no ótimo, porque conseguimos surpreender de novo esta época com o nosso 4.º lugar.
- Que análise faz à Liga BPI?
- Acho que dá para perceber a evolução, pois foi a primeira vez que se decidiu quem iria ser campeão e quem iria descer apenas na última jornada. O facto de estarmos a disputar o 4.º e 5.º lugares com um plantel praticamente composto por jogadoras portuguesas também é muito bom para a Liga e para nós.
- O que mudou em si nestas duas épocas no Damaiense?
- Aqui era tudo muito mais incerto e teve de ser tudo muito mais mental. Tal como disse, o Damaiense ajudou-me a desenvolver coisas que no Sporting não era possível. Joguei mais, cresci a poder errar e senti-me importante com um papel diferente e num estilo de jogo distinto. Estava habituada a um futebol apoiado e esta forma de jogar diferente ajudou-me muito. Joguei em várias posições e consegui evoluir em todas.
"Ainda não é possível viver só do futebol"
- No meio de tanto futebol há ainda espaço para a faculdade. Tem sido fácil conciliar o futebol com os estudos?
- Não é fácil. Estou a tirar gestão na Faculdade Nova, em Carcavelos, e moro no Montijo. É muito difícil ir às aulas, então estudo muito mais em casa e vou fazer os exames. Mas este é o meu plano B, não é a minha prioridade. É bom termos outras possibilidades em aberto.
- Sente que o futebol ainda é incerto?
- É muito isso, sim. O futebol teve uma evolução exponencial e vai continuar a crescer, mas, neste momento, eu sou uma pessoa realista. Ainda não é possível viver do futebol. Há muitas coisas que foram evoluindo, mas financeiramente é impossível vivermos do futebol e tenho de pesar tudo.
- Ainda há espaço para muitas melhorias...
- Eu sou apaixonada pelo futebol e ainda não me consigo ver a fazer outra coisa. Mas ainda há muito para evoluir. Por exemplo, o FC Porto vai entrar agora e acho que é um excelente passo. Quantas mais equipas top entrarem no futebol feminino, com boas estruturas, mais a Liga vai crescer e atrair jogadoras para quererem vir para cá e se dedicarem ao futebol.
Fala-se muito que o futebol feminino não gera receita, mas há muitas modalidades masculinas que não geram receitas e não é por isso que não são apoiadas. Precisamos de ser apoiadas. Jogadoras, clubes e estruturas.
"Não há dia em que não fale de futebol"
- Olhemos agora para a Seleção. Como tem visto também a evolução da equipa das quinas?
- A Seleção tem vindo a crescer, não só pelo ranking, mas pela qualidade de jogo e maneira como joga. A seleção portuguesa é muito valorizada lá fora, mas acho que pode continuar a crescer. O caminho é risonho e acredito que podemos chegar perto das melhores. Pode parecer um bocadinho ambição a mais, mas temos de sonhar.
- É um objetivo da Marta?
- Qualquer jogadora quer ser internacional. Tive o privilégio e a responsabilidade de representar Portugal nas camadas jovens, das sub-16 às sub-23, mas não é algo que mexa comigo ou que esteja sempre a pensar. Se acontecer acontece, se não acontecer está tudo bem.
- Tenho mais duas perguntas. A primeira é: como é que a Marta olha para o futebol?
- Não há dia em que não fale de futebol. É das coisas mais importantes para mim e é aquela que me faz acordar todos os dias com energia para ir treinar e me faz estar à mesa com os meus pais a discutir as mais diversas questões sobre futebol. É tão bonito que esteja a crescer. Para os homens está tudo muito mais estável há muitos anos e nós presenciamos este crescimento. Há cada vez mais gente a apoiar o feminino, mas eu acredito que ainda possa haver mais. É só quererem potenciar o futebol feminino.
- Por fim, qual a mensagem que deixa às atletas ainda mais jovens?
- Divirtam-se e aproveitem o momento. Eu tenho só 21 anos, mas parece que o tempo passou a correr. O ano passado fui ver um Benfica-Sporting de sub-13 e as miúdas já jogam com muita qualidade! O caminho é longo, mas vai haver uma luz ao fundo do túnel e podem chegar onde quiserem e onde o trabalho assim as levar.