A desilusão que construiu uma carreira: a história do treinador de guarda-redes de Jorge Costa
A paixão pelo futebol é, muitas vezes, hereditária. Passa de geração em geração. E quando os pais começam por torcer um pouco o nariz com receio da pequena dose de violência associada a este desporto, os avós são sempre os culpados por dar asas a esse sonho.
Foi assim, aos sete anos, que Diogo Martins Almeida, hoje um homem feito e treinador de guarda-redes de uma das grandes equipas da Liga 2 portuguesa, entrou para este mundo apaixonante. Pela mão do avô, que o levou a um treino. O pequeno Diogo começou por experimentar o papel de defesa direito, mas não achou muita piada...
"Num dos primeiros treinos estava lá um senhor que me desafiou a ir para a baliza e gostei muito. A minha mãe é que não gostava muito porque chegava a casa sempre cheio de lama", recorda, entre risos, o próprio Diogo Martins Almeida, em conversa com o Flashscore. "Tive a sorte de conhecer esse senhor, o senhor Pereira. Era muito comunicativo e foi uma referência para mim", acrescenta.
"Ia ter o contrato da minha vida e perdi o encanto ao futebol"
O Ermesinde foi a primeira casa e o "jeito para a coisa era algum" ao ponto de durante o escalão de iniciados ser convidado a integrar os treinos do plantel sénior. Seguiu para os juniores do Paços de Ferreira, então no campeonato nacional, e visto como 3.º guarda-redes da equipa principal dos castores. Tudo corria de feição até ao dia em que conheceu o lado mais negro do futebol.
"Tive um empresário que apareceu na minha vida, que não foi nada bom para mim... Fez-me desvincular do Paços e apresentou-me um contrato fantástico para um miúdo de 19 anos. O clube era o Nacional da Madeira e posso dizer que eram cinco ordenados mínimos. Estava maravilhado, eu e o meu pai. Já tinha as passagens de avião para viajar a tempo da pré-época, mas depois esse tal empresário deixou de me atender o telefone", confessa Diogo.
"Perdi um bocadinho o encanto ao futebol. Sem clube, ainda cheguei a ir treinar a um clube da segunda divisão espanhola, mas acabei por não ficar. Talvez também não tivesse a qualidade suficiente para isso. Esse episódio foi, talvez, a maior desilusão. Ainda por cima na altura não havia o apoio que existe hoje, por exemplo, de uma equipa sub-23", completa.
A desilusão depressa deu lugar a uma oportunidade. Depois de ser enganado por alguém que lhe prometera um futuro risonho, estava na hora de controlar o seu próprio futuro. Diogo acabaria por enveredar pela via académica e "deixar o incerto pelo certo": "Se estudasse, sabia que a minha paixão iria continuar dentro do que eu mais amo, tendo eu a capacidade de controlo".
De Vital a Amorim: os 10 anos no SC Braga
Durante o seu percurso académico, o destino apontou-lhe de novo o caminho para as balizas. Nas paredes da faculdade um papel sobre um curso especializado para treinador de guarda-redes despertou a sua curiosidade e levou-o até Braga e ao SC Braga, onde um primeiro estágio "não remunerado" se tornou numa oportunidade de integrar a estrutura dos arsenalistas, tendo por lá ficado durante 10 anos. Pelo meio tirou alguns cursos em St. George's Park, casa das seleções de Inglaterra, e fez um estágio nos londrinos do Fulham.
Mas foi em Braga que aprendeu (quase) tudo: "Comecei pelos sub-15 e tive uma grande referência, o mister Jorge Vital (n.d.r: atual treinador de guarda-redes da equipa técnica de Rúben Amorim no Sporting), que agarrou em mim e me deu o privilégio de trabalhar ao lado dele durante 10 anos. Ensinou-me muita coisa, mesmo. Ele e o Eduardo, que também foi uma grande referência e a ajuda durante a minha estadia em Braga. Foram 10 anos de uma dedicação tremenda a um clube que vi crescer e eu também cresci muito, desde os sub-15 à equipa principal".
"Sendo um treinador da casa, tive a sorte de poder vivenciar com muitos treinadores principais e equipas técnicas, desde o Rúben Amorim ao Artur Jorge. O contacto diário com eles deu-me uma bagagem muito grande e fui construindo a minha própria ideia, aquilo que eu queria quando tivesse um projeto", sublinha.
A separação acaba por acontecer quando recebe o convite do treinador Miguel Cardoso para mudar-se com ele para o projeto do Rio Ave, na Liga Portugal: "Ao fim de 10 anos no SC Braga, senti-me preparado para dar um passo e ir sozinho para ter o meu próprio projeto. Estou muito grato ao SC Braga pelos 10 anos fantásticos. É um clube que vai ficar para sempre ligado à minha história".
Não correu bem em Vila do Conde e surgiu a oportunidade de abraçar um projeto de um grupo alemão em Portugal - entrada dos investidores do Hoffenheim no Académico de Viseu -, que permitiu o contacto direto com nomes como Michael Rechner, atual treinador de guarda-redes do Bayern Munique. Até à chegada de Jorge Costa, mas já lá iremos. Antes mergulhamos um pouco pelas especificidades de uma posição tão singular.
As características fundamentais de um guarda-redes
A posição de guarda-redes é muito específica. Um trabalho muitas vezes solitário, afastado do restante grupo, e em tantas ocasiões ingrato para quem dele decidiu fazer vida. Por norma, num plantel existem três guarda-redes, mas só um pode jogar. Não faltam casos de guarda-redes que passam anos na sombra a dar o seu contributo para que outro colega de posição brilhe. Ingrato? Altruísmo!
O contexto também é importante. O clube e aquilo que o rodeia, a personalidade individual de cada um. Trabalhar com o jovem Domen Gril (Académico) não será o mesmo que trabalhar com o experiente Pedro Trigueira (AVS). Pese tudo isso, há características fundamentais e comuns que todos devem reunir para o bom desempenho da função.
"Há atributos que são quase inatos. O guarda-redes tem de ser muito rápido e explosivo. Eu preparei-me para ter o meu modelo e identidade, que, naturalmente, tenho de enquadrar no projeto. O ano passado tinha um miúdo e agora tenho um guarda-redes experiente. Não posso pedir a um guarda-redes de 36 anos o mesmo que a um de 22. É preciso perceber e enquadrar a metodologia de treino, a gestão das cargas, sempre com o máximo de exigência e rigor", explica Diogo Martins Almeida ao Flashscore.
"Num lote de três guarda-redes, em que um deles normalmente é um miúdo da casa, se um está a jogar o outro tem de perceber que está perto de poder jogar. Parte de mim despertar isso neles. Tem de haver exigência e competitividade entre eles, mas com grau de proximidade. Os objetivos do Trigueira são uns, e tenho de o ouvir nesse sentido e perceber como o posso ajudar, e também tenho de perceber quais os objetivos do Simão (Bertelli) para também o poder ajudar", continua.
"Felizmente, tenho tido sempre grupos fantásticos e eu também tento proporcionar-lhes um dia-a-dia saudável. O Trigueira é apoiado de forma incondicional pelos outros dois guarda-redes. Ainda assim, eles sabem que não podem estar conformados. Precisam de sentir que estão a ganhar qualquer coisa", remata.
De Viseu à Vila das Aves: sete prémios e relação com Jorge Costa
"Sozinhos vamos mais rápido. Juntos vamos mais longe". No futebol e na vida. Diogo Martins Almeida é "muito chato" (no bom sentido, claro) com a equipa técnica e procura o apoio de todos para que o seu trabalho seja bem conduzido. O fisiologista ajuda a organizar as cargas, os analistas fornecem as imagens dos treinos/jogos e o treinador principal partilha consigo a ideia do seu modelo de jogo para que o guarda-redes não seja um corpo estranho.
"Cada vez mais os treinadores principais que querem estar no topo se preocupam com a função de treinador de guarda-redes. Há 10/15 anos, qualquer pessoa servia para estar com os guarda-redes, mas essa ideia está a mudar. Hoje querem um bom treinador de guarda-redes", defende.
Esta postura e exigência diária também ajudam a explicar o sucesso obtido nos dois últimos projetos. Em Viseu, Domen Grill conquistou três prémios de guarda-redes do mês e acabou eleito melhor guardião da Liga 2 2022/23 e, na Vila das Aves, Pedro Trigueira já levou para casa também três galardões.
"Claro que fico contente com estas distinções. O Trigueira dizia-me que nunca tinha ganho um prémio e, este ano, assim que ganhou o primeiro, o filho adorou. Fico muito feliz por eles. A verdade é que têm sido dois anos fantásticos, com sete prémios no que toca a guarda-redes, e olhamos para isso como uma grande responsabilidade e ambição para o futuro", assegura.
A estabilidade é outro pilar importante e isso também muito se deve à "competência" de um treinador que conta com uma "bagagem incrível" no futebol.
"O mister Jorge Costa é um ser humano fantástico e um líder imponente. Já tive a felicidade de trabalhar com grandes treinadores, entre eles o Jorge, e o que posso dizer dele é que tem uma forma de trabalhar muito boa. Os jogadores olham para ele como referência e isso dá-lhe um estatuto diferenciado. É uma pessoa muito exigente e muito competente, que sabe os momentos para trabalhar e para brincar com o grupo", elogia.
"Eu espero ter acrescentado à equipa técnica dele. Estamos a começar um grupo novo e temos ido um pouco contra todas as expectativas. Estamos envolvidos numa Liga 2 muito competitiva e estamos na posição em que estamos em março (n.d.r: 2.º lugar). Gosto muito de trabalhar nesta equipa técnica", conclui.
Os nomes do futuro: João Carvalho, Diogo Fernandes, André Gomes...
Para alguém que vem da formação de guarda-redes, habituado nos tempos de SC Braga a dias de trabalho com 50-60 miúdos guarda-redes, é inevitável falar sobre o futuro da posição.
"Não posso deixar de destacar o Diogo (Costa) no FC Porto. Se olharmos para o percurso do Diogo, ele teve sempre a oportunidade de fazer a sua formação acima da idade. É um jovem que joga Liga dos Campeões como se fosse Liga 2. Muito tranquilo", introduz.
"Indo mais para a realidade que conheço, há miúdos que se vão destacar, sem dúvida. Posso falar do João Carvalho, do SC Braga, em destaque nos sub-23. O Diogo Fernandes, do FC Porto, que também já começa a ter minutos na Liga 2. O André Gomes, do Benfica, que já vai trabalhando com a equipa principal. Há uma panóplia de miúdos que me leva a ter a convicção de que o futuro da posição está assegurado", apresenta.
"O Vital fez uma reestruturação no treino do Sporting, o Eduardo está a fazer um trabalho fantástico na formação do SC Braga, o Fernando (Ferreira) no Benfica...", acrescenta.
"É muito difícil chegar cedo a patamares altos"
A qualidade existe em abundância, mas nem sempre é suficiente. E é aqui que voltamos ao jovem Diogo Martins Almeida que perdeu o sonho de ser guarda-redes profissional antes de seguir o caminho de treinador. A experiência permite deixar conselhos para quem está aí à porta.
"É difícil para um miúdo ter a capacidade para chegar ao topo. Vivemos nesta ilusão. Os miúdos querem ser profissionais, estar nos melhores clubes e ganhar muito dinheiro... Não é fácil... Um jovem guarda-redes que faça a formação num SC Braga, FC Porto, Vitória SC, entre outros, vai muito provavelmente terminar os sub-19 e ter de ir, com todo o respeito, para um clube da Liga 3, passando de um patamar top de formação para algo completamente diferente. A primeira vontade é dizer: 'vou desistir'. É cada vez mais difícil chegar cedo a patamares altos, por isso tem de haver essa capacidade de passar a barreira", aconselha.
Sobre o próprio futuro não há dúvidas: "Sinto-me preparado para abraçar qualquer tipo de projeto, mas estou perfeitamente confortável com esta equipa técnica do Jorge e espero que a caminhada que desejo seja feita em conjunto. Sei que estamos preparados para os próximos desafios".