Opinião: SADs portuguesas indicam caminho que pode chegar ao futebol brasileiro
No segundo escalão luso, no meio da tabela, o tradicional Belenenses trabalha, para, pelo menos, manter-se onde está – isto é, não descer de divisão. Em 2018, depois de um imbróglio jurídico, um dos mais tradicionais clubes de Portugal recomeçou a sua vida nas competições distritais. Desde então, obteve cinco promoções seguidas.
São dois exemplos, lados distintos da mesma moeda, que ajudam a entender os meandros da profissionalização do futebol no outro lado do Atlântico. Tanto o SC Braga quanto o Belenenses estão estruturados há mais de 20 anos sob o formato de SADs (sociedades anónimas desportivas), o equivalente às SAFs (sociedades autónomas financeiras) brasileiras.
A legislação portuguesa, apesar de ter passado por reformas desde então, existe desde os anos 90. O SC Braga virou SAD em 1999, um ano depois dos Azuis do Restelo.
“A importância cultural e a paixão pelo futebol é igual, apesar da diferença gigantesca no tamanho dos dois países. As questões jurídicas também estão muito mais maduras em Portugal. Essa consolidação é outro ponto importante que não pode ser negligenciado”, afirma Rafael Plastina, executivo brasileiro ligado à empresa Convocados, que acaba de anunciar o projeto de compra de um clube da Terceira Divisão portuguesa.
Consenso entre as partes
Um dos debates que ainda ocorre em Portugal, e ganha cada vez mais peso no Brasil, é sobre a possível divergência que pode existir entre investidores e os dirigentes de um clube associativo. Uma SAD, ou SAF, pode arruinar a história, e a cultura de uma equipa?
Mais uma vez, os dois exemplos portugueses sobem as escadas dos balneários para entrar em campo. O tradicional clube do Restelo, que em termos históricos está no top 5 do futebol português, já era uma SAD mas, em 2012, quando novos investidores entraram no negócio, a tragédia futebolística, sob olhar dos adeptos, começou a desenhar-se.
O ex-executivo da Portugal Telecom, Rui Pedro Soares, por meio da sua empresa Codecity, comprou 51% das ações da SAD do Belenenses. O acordo aprovado pelos sócios, em Assembleia Geral, até previa que o clube associativo mantivesse alguns direitos especiais, além de poder recomprar as ações em períodos específicos. O último deles, em janeiro de 2018.
Acordo quebrado
Dois anos depois do casamento, em 2014, a Codecity entra na Justiça para anular o acordo, dizendo que o clube não estava a honrar a sua parte do acordo e que havia dívidas a serem repostas. O clube também perdeu o direito de recomprar as ações.
Depois de várias idas e vindas na Justiça, em junho de 2018, houve a separação. O que era uma unidade virou duas. Ressurgiu o "Os Belenenses" e a SAD, um ano depois, viraria a B SAD. Os dirigentes da associação desportiva resolveram recriar a equipa principal e recomeçar a jogar as partidas na distrital.
A B SAD, ainda com Soares à frente, tentou seguir com as próprias pernas e até procurou outras fusões desportivas para se associar, mas caiu de divisão e, hoje, tem um futuro incerto.
O "Os Belenenses", conseguiu, também na Justiça, regressar ao seu tradicional estádio, às suas cores e ao seu escudo. O clube volta a respirar, para deleite dos apaixonados adeptos.
SC Braga conta com envolvimento da comunidade local
O histórico recente do SC Braga também acendeu um alerta nos empresários-adeptos da cidade. Há quase um ano, a Qatar Sports, mesma dona do PSG, comprou 21,67% das ações do clube. A chegada dos investidores do Médio Oriente ao Norte de Portugal fez com que um grupo local criasse um movimento para que vários pequenos acionistas vendessem as suas ações, a um preço menor, para o próprio clube.
Com um pouco mais de 13% que estão na mão de pessoas da cidade, o SC Braga, que já tem 36,98% do controle acionário, ficaria com 50% da SAD. Os debates em Braga continuam.
“O ponto central é um clube ter uma boa gestão, independente do modelo. É natural os casos negativos (e além do Belenenses, existem outros exemplos em clubes menores de Portugal onde ocorreu o mesmo desfecho) chamarem mais a atenção. Mas eles são mais explicados pelas pessoas envolvidas, com os objetivos delas, do que com falhas na legislação ou algo semelhante”, afirma Plastina.
A empresa Convocados, que conta também com a participação do campeão mundial de 2022 Roque Júnior, comprou o Anadia, um clube da cidade homónima ea região de Aveiro, que está na Terceira Divisão nacional.
A SAD, que já existe há três anos, acabou de mudar de mãos. “O nosso projeto envolve vários aspetos. Inclusive relacionamento com a comunidade, patrocinadores e formação de atletas. Vamos fazer o clube crescer e manter a cultura do futebol local”, explica um dos executivos da Convocados.
Transparência
Num cenário em que os grandes clubes portugueses também tornaram-se SADs há tempos – mas todos ficaram com a maioria das ações (FC Porto 76%, Benfica 67% e Sporting 84%) – é inevitável que muito do que ocorreu sirva de exemplo positivo para o futebol brasileiro, segundo o advogado Guilherme Panisset Barreto Bernardes. Principalmente, quando o tema é a transparência.
O regime normativo da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), órgão governamental português equivalente à Comissão de Valores Mobiliários (CVM), imposto às SADs, segundo Bernardes, obriga que as sociedades anónimas desportivas sigam as mais modernas práticas de governação corporativa. Algo que ainda não ocorre no Brasil.
Tome-se como exemplo o Benfica. O site do clube, por exemplo, na aba “informação privilegiada”, dentro do portal da SAD, é obrigado a informar todas as compras e vendas feitas durante um exercício.
Por serem listados em bolsa, os clubes portugueses são obrigados a informar todas as suas transações, e fluxos de caixa, aos seus acionistas. Um dos textos mais recentes é sobre a compra do atacante brasileiro, nascido em Campina Grande mas formado no Palmeiras, Arthur Cabral.
Caminho aberto
Segundo Bernardes, é fundamental que os clubes brasileiros que começam a organizar-se de forma profissional avancem na transparência e passem a comunicar as suas negociações de uma outra forma ao mercado. “Existe uma quantidade grande de benefícios na prática dessas medidas que, como visto, são extremamente bem-vindas por já terem sido empregadas com sucesso em outros mercados”, explica o advogado brasileiro do Chalfin Goldberg Vainboim Advogados.
Estar de acordo com as regras do país e ter as contas em dia ajudam o clube, por exemplo, a obter crédito na praça. E, além disso, a lançar papéis no mercado que sejam vistos como bom negócio pelo mercado, independentemente da bola entrar ou não. Os clubes portugueses, assim como em outros países do continente europeu, já entenderam a principal regra do jogo fora das quatros linhas.
“Não existe para onde fugir. Procedimentos de compliance, de boa gestão em geral devem estar presentes seja na SAD, na SAF ou em modelos associativos. Existem várias outras diferenças importantes na Europa em relação ao Brasil que nos moveu para investir primeiro lá, o que não significa que o mercado brasileiro não nos interesse".
"Aqui existem clubes com dívidas muito grandes porque tiveram gestões temerárias. A legislação ainda não está tão madura também como lá. Fora que a cultura do adepto na Europa é diferente. A maioria lá sabe do tamanho que eles têm, em termos de clube pequeno, médio e grande. Aqui, a mentalidade indica que todos são grandes”, contextualiza Rafael Plastina, da Convocados.