Perfil de Manuel Fernandes: eterno capitão do Sporting e poker no 7-1 ao Benfica
Natural de Sarilhos Pequenos, no concelho da Moita, distrito de Setúbal, Manuel José Tavares Fernandes construiu uma vida inteira ligada ao futebol, enquanto jogador, treinador, dirigente e, até, comentador televisivo.
Começou para o futebol aos 16 anos e cumpriu o sonho da mãe - precocemente desaparecida, quando o filho tinha 10 anos -, que lhe anteviu o percurso clubístico enquanto jogador.
Como extremo direito, deu os primeiros pontapés no clube da terra, o 1º de Maio Sarilhense, e logo deu nas vistas, saltando para o Grupo Desportivo da CUF. Aí, tornou-se profissional aos 18 anos.
Seis épocas e 43 golos depois, esteve com um pé e meio no FC Porto. Nesse ano de 1975, contudo, acabou por mudar-se para o clube do coração, o Sporting, “ajudado” pelos ventos de mudança soprados pelo 25 de Abril: em 72 os ‘leões’ quiseram levá-lo, mas o dono da CUF impediu a saída.
Mais tarde, em 1980, também teve hipótese de se mudar para o Benfica. Um dirigente dos ‘encarnados’ acenou-lhe com um chegue cujo valor era superior a tudo quanto ganhou em 12 anos no Sporting.
“Tremi, mas não vacilei”, afirmou, em 2011, em entrevista à Lusa. “Eu adorava tanto o Sporting que para mim era impensável jogar num rival que, como sportinguista, nunca gostei. Hoje, se calhar, tenho uma maneira diferente de ver as coisas. Mas na altura senti que nunca podia representar o Benfica”, acrescentou.
Nessa mesma conversa, lembrou o quão gostava do Sporting: quando jogava pelo clube do Barreiro, ao intervalo ia perguntar ao roupeiro qual era o resultado dos ‘leões’. Era “fanático”, a ponto de “chorar quando o clube perdia”, recordou à Lusa o ‘eterno capitão’.
Quando chegou a Alvalade, em 1975, foi logo adaptado a avançado por Juca e, a partir de 1978/79, o técnico jugoslavo Milorad Pavic entregou-lhe a braçadeira, projetando-se como ‘eterno capitão’.
Lá na frente, formou uma dupla temível com Rui Jordão (1952-2019) e cumpriu 12 temporadas que configuram uma página de sucesso na história do clube, recordada até hoje.
Manuel Fernandes nunca falhou nenhum dérbi para o campeonato nessas 12 épocas, participando em 24, além de outros que jogou para a Supertaça, a Taça de Portugal e a Taça de Honra. O único em que não participou foi um clássico para a Taça, em que o Sporting venceu o Benfica por 3-0, com três golos do brasileiro Manoel.
Com a camisola verde e branca, conquistou dois títulos nacionais (1979/80 e 1981/82), apontou 255 golos no campeonato e 342 em todas as competições oficiais, figurando como o segundo melhor marcador da história do Sporting, apenas atrás de Fernando Peyroteu (540 golos em 332 jogos oficiais).
A isto soma ainda o recorde de presenças em jogos da divisão principal do futebol português, facto que motivou uma homenagem da Liga a 25 de abril de 2023, em Sarilhos Grandes.
“Ser o jogador com mais jogos é um grande orgulho. Já ganhei campeonatos, bolas de prata, mas este troféu é diferente. Sonhava ser jogador de futebol e tenho 486 jogos na I divisão”, disse, na cerimónia, Manuel Fernandes.
O antigo avançado foi aí considerado “uma referência viva” pelo presidente da Liga, Pedro Proença, “não só por aquilo que foi como jogador mas fundamentalmente por um conjunto de valores que sempre defendeu”, sublinhou.
No total, Manuel Fernandes somou 601 jogos, 318 golos e cinco títulos: dois campeonatos nacionais, duas Taças de Portugal e uma Supertaça, todos com o Sporting.
Somou também um prémio de melhor marcador do campeonato, com 30 golos de ‘leão’ ao peito em 1985/86, contabilizando ainda 30 internacionalizações e sete golos pela seleção ‘AA’ de Portugal.
Mas o feito pelo qual é ainda hoje mais citado é o ‘poker’ com que contribuiu para o 7-1 no dérbi entre Sporting e Benfica, à 14.ª jornada da época de 1986/87, em 14 de dezembro de 1986.
“As pessoas podem dizer que o Benfica foi campeão, mas já o foi muitas vezes. Campeonatos há muitos, mas um resultado destes há só um, e por isso é que passados 30 anos os sportinguistas ainda hoje me felicitam no dia 14 de dezembro”, disse Manuel Fernandes em entrevista à agência Lusa, em 2016, por ocasião do 30.º aniversário da goleada que perdura na memória dos adeptos do Sporting.
Apesar do feito, saiu no final dessa época, dispensado pelo inglês Keith Burkinshaw. Mudou-se para o Vitória FC orientado por outro britânico, Malcolm Allison, o treinador que mais apreciou ao longo da carreira.
Manuel Fernandes, que gostava de ter jogado com Maradona e Cruyff, retirou-se dos relvados em 1988, com mágoa: não se despedir na equipa de sempre, o Sporting. Outro desgosto: ter ficado fora da convocatória para o Mundial de 1986, no México, sem uma justificação. Ele que tinha acabado de ser o melhor marcador do campeonato, com os tais 30 golos na época de 1985/86.
Em Setúbal, iniciou o percurso como treinador no final da época de 1987/88. Orientou depois o Estrela da Amadora, Ovarense, Campomaiorense, Tirsense, Santa Clara, Sporting, Penafiel, ASA (Angola) e União de Leiria, encerrando a carreira como treinador em 2011, novamente à frente do Vitória FC.
No banco, foi campeão pelo Santa Clara, na II divisão B (1997/98) e na II Liga (2000/01), saindo à 18.ª jornada para orientar o Sporting. Também pelos açorianos, subiu à I divisão em 1998/99, feito que já tinha conseguido no Campomaiorense (1994/95) e que repetiu no Penafiel (2003/2004) e na União de Leiria (2008/2009).
Em Leiria pegou na equipa no último lugar, à oitava jornada, terminando na segunda posição da II Liga. Mas, numa entrevista ao jornal Expresso, em 2020, confessou que foi no Campomaiorense e no Santa Clara que mais gostou de treinar, nas épocas das subidas.
Pelo meio, regressou ao Sporting como treinador principal, na época de 2000/01. Em seis meses, conquistou a Supertaça e ficou em terceiro lugar. Mas, “depois não quiseram que eu ficasse mais”, desabafou também ao Expresso.
Voltou ao clube entre 2011 e 2013, como diretor do Sporting B, e foi também coordenador de recrutamento dos ‘leões’, entre 2015 e 2019, antes de se dedicar em exclusivo ao comentário de futebol na televisão.
À Lusa, resumiu a carreira num balanço repartido por duas entrevistas.
“Não fico na história do Sporting por causa dos 7-1, mas pelo que fiz ao longo de 12 anos no clube, embora este jogo com o Benfica tenha sido algo inesquecível, marcante para a vida, mesmo para os benfiquistas”, realçou, em 2016.
Antes, em 2011, admitiu que, mesmo não tendo conquistado títulos internacionais pelos ‘leões’, se sentia protagonista de algo único.
“Para um miúdo que veio de Sarilhos Pequenos para jogar nem que fosse uma vez no Sporting, ter feito 600 jogos no velhinho estádio de Alvalade, onde sou o jogador com mais golos marcados, é uma coisa inédita”, rematou.