Reportagem: Com Messi e Mundial em casa, a MLS enfrenta gigantesco desafio desportivo
A ideia era fazer com que o desporto da bola redonda ganhasse espaço próprio no país da bola oval. Naquele ano, a MLS (Major League Soccer) tinha 13 equipas e 7 nem jogavam em estádios exclusivos.
O também astro da seleção inglesa, além de fazer a liga norte-americana de soccer mudar de patamar – e ganhar uma quantia incontável de dinheiro em salários e patrocínios – ainda recebeu mais uma garantia para usar no futuro.
Por 25 milhões de dólares - uma pechincha tendo em conta os 500 milhões de dólares atuais -, Beckham poderia comprar uma nova franquia em qualquer lugar dos Estados Unidos, exceto Nova Iorque, quando parasse de jogar. Em 2014, usou o benefício inédito que só tinha sido daapdo a ele até então e o Inter de Miami, do qual é um dos donos, entrou em campo em 2020.
O segundo jogador da história da MLS a ter esse benefício é Lionel Messi, que Beckham ajudou a levar para a América. Será que o atual camisola 10 campeão do mundo vai ser dono de alguma equipa a partir de 2026, quando acabar o atual contrato? Atualmente são 29 clubes, e o 30.° chegará em 2025 em San Diego.
Sede escolhida com missão a cumprir
Em 1988, a FIFA escolheu os Estados Unidos como sede do Campeonato do Mundo de 1994 – Portugal falhou a qualificação, o Brasil foi tetracampeão ao bater a Itália nos penáltis – com a condição de o país criar uma nova liga, uma vez que a antiga tinha ruído em 1985. Tudo tornar-se-ia realidade apenas em 1996.
“Nos primeiros anos, a MLS lutou muito. Estiveram perto de desistir no início dos anos 2000 e, apenas com a chegada do Beckham, é que as coisas começaram a mudar”, afirma Stefan Szymanski, professor de gestão desportiva na Universidade de Michigan.
Desde então, segundo o inglês que trocou a Europa pela aprazível Ann Arbor, no interior de Michigan, cidade em que Tom Brady surgiu para o desporto, a liga de futebol dos Estados Unidos obteve mais sucessos do que fracassos.
“Houve um crescimento notável do futebol nos Estados Unidos em 20 anos e o Messi, agora, é um passo quase lógico. E a continuidade desse processo vai depender muito de quanto ele, de facto, conseguirá participar”, afirma Szymanski, autor de livros e artigos sobre negócios do desporto, entre eles a obra Soccernomics, escrita com Simon Kuper.
Andorinha só vai fazer verão?
A chegada da anteiga estrela do Barcelona e do PSG, segundo o especialista, gerou muito impacto, com os muitos holofotes a viraram-se para o soccer norte-americano. “Agora, não tenho muita clareza se o Messi vai atrair mais gente para ver, por exemplo, New England Revolution contra os Houston Dynamo, numa partida em que ele, obviamente, não vai atuar.”
Para o professor radicado em Michigan, vai ser interessante acompanhar qual dos argumentos vai prevalecer. “O facto de Messi ser uma estrela mediática está a criar um burburinho para o futebol nos Estados Unidos. Mas não está claro até que ponto um jogador sozinho poderá mudar o estatuto da Liga".
“Apesar de ter acontecido o fator Beckham no passado, e até o de Pelé, sem dúvida uma figura muito maior, não existe a clareza de quanto eles, de facto, ajudaram na consolidação desportiva de uma forma mais perene.”
No que toca a Messi, o facto de o Inter Miami não se ter qualificado para os playoffs vai ajudar a medir o peso do craque argentino para a competição.
“A MLS nunca vai competir com as três grandes ligas norte-americanas. O soccer não tem a mínima hioótese em relação ao futebol americano, ao basquetebol e mesmo com o beisebol, apesar do declínio histórico desse desporto por causa do envelhecimento médio dos adeptos. Mas nós devemos ver, em breve, nos próximos anos, ultrapassar por exemplo o hóquei no gelo", afirma o consultor brasileiro Ricardo Fort, especializado em administração e marketing desportivo.
Negócio bem estruturado, próximo foco é na parte desportiva
Para o especialista, apesar de a maioria das equipas da MLS operarem no vermelho, não existe dúvidas de que a liga norte-americana de futebol está absolutamente consolidada do ponto de vista do negócio. “Agora, em termos desportivos, isso é outra coisa”, referiu Fort.
Entre outros motivos, porque a cultura nos Estados Unidos é absolutamente diferente de outros lugares, principalmente em comparação com Portugal e Brasil. “Não é apenas no soccer, mas nos desportos em geral. Todos eles são estruturados primeiro como negócio para depois virar uma atividade desportiva".
“O objetivo de quem investe, antes de mais nada, é maximizar o retorno do capital. Apesar dos défices da maioria das equipas, a questão na MLS é a valorização do ativo. É isso que justifica o processo. As franquias que foram compradas por 50 a 100 milhões de dólares hoje valem 500 milhões”, afirma Fort.
Limite para controlo
Ao contrário de outros países, a MLS tem regras rígidas para evitar, ou pelo menos diminuir, a velocidade com que se pode perder dinheiro nos clubes. Uma delas é a regra de teto salarial. Atualmente, o chamado plantel principal de cada equipa, formado por 20 atletas, não pode ter uma folha salarial anual superior a 5,2 milhões de dólares.
Até para facilitar a vida de quem procura contratar grandes estrelas, cada equipa pode contratar até três jogadores acima desse teto salarial. Uma regra criada exatamente em 2007 para acomodar a chegada de Beckham.
Ainda existem regras específicas para jogadores das camadas jovens, o draft de atletas saídos das faculdades e outros detalhes para manter um certo fair play financeiro em funcionamento. “Tudo isso é feito para nivelar meio que por baixo as equipas. Para baixar os custos. Em teoria, a qualidade desportiva pode ser baixa, mas a competitividade é alta”, explica Fort.
Crescimento exponencial
De acordo com o consultor, é claro que muita coisa melhorou em 15 anos. “Quando o Beckham chegou, parecia que estava a atuar contra jogadores da quinta divisão. Hoje, quando converso com jogadores da MLS que vieram da Europa, e pergunto sobre a experiência de jogar aqui, muitos relatam que se sentem como se estivessem na segunda divisão italiana. Esse é o nível.”
Apesar da consolidação do negócio, e da evolução desportiva em ondas, Szymanski afirmou que apenas com uma profunda mudança de ambiente, com as audiências a crescer de forma sustentável nas plataformas de streaming e na própria TV - e nesse meio ainda são baixas -, é que a MLS poderá finalmente consolidar-se, num patamar elevado, em termos de qualidade.
“Estamos num momento em que as coisas parecem estar a correr bem, mas também teremos momentos em que talvez pareça que o futuro será menos promissor. Ainda vai demorar algum tempo para que a MLS se estabeleça, apesar da Apple TV, por exemplo, estar a apostar que vai conseguir ter sucesso e grandes audiências, ao contrário do que aconteceu com outros que tentaram no passadoe e fracassaram”, analisou o investigador da Universidade de Michigan.