O incrível novo mundo de Inês Simas nos Estados Unidos: "Isto é gigantesco"
As primeiras memórias começaram a ser criadas na Lagoa e ganharam as primeiras cores na Associação Clube de Futebol Pauleta, em Ponta Delgada, antes da mudança "difícil" para o Continente, então para abraçar a oportunidade Benfica.
Presença regular nas seleções jovens portuguesas, Inês Simas passou quatro anos no histórico emblema lisboeta até tomar mais uma decisão "difícil", mas "necessária", para estar a 100% nos estudos (curso de gestão) e no desporto.
"American Dream". A média lusa juntou-se ao futebol universitário do estado de Mississippi e é por lá que conta escrever os próximos capítulos da sua história. Mas não está sozinha. "You'll Never Walk Alone" é a icónica música dos Gerry & The Pacemakers, muito associada ao Liverpool, e que para Simas significa todas as pessoas que foi ganhando ao longo dos anos e que, mesmo longe, estão sempre com ela.
"O futebol sempre fez parte da minha vida"
- Conte-nos como é que o futebol apareceu na sua vida?
- O futebol não surgiu na minha vida; sempre fez parte dela. Lembro-me do meu pai jogar no corredor lá de casa, a minha irmã também. O desporto sempre esteve muito presente na nossa família. Depois, aos 4 anos, comecei na escola do Pauleta e fiquei lá até aos 15 anos, altura em que fui para o Benfica.
- Como recorda esses tempos na Associação Clube de Futebol Pauleta?
- Houve momentos em que não era fácil, porque as meninas não eram muito bem-vindas no futebol, mas sempre que olho para trás penso: foram momentos incríveis. Tenho amigos desde essa altura. Só fico feliz sempre que recordo esses momentos e tenho muitas saudades. Era um futebol muito alegre, sem a pressão dos resultados.
- Quais eram os sonhos?
- Sinceramente, até aos 13-14 anos, nunca pensei no futebol como algo que quisesse fazer na vida, porque não achava que o futebol feminino pudesse vir a ser uma profissão. A partir dos 14-15 anos, com a chamada à seleção, comecei a perceber que, talvez, o futebol feminino pudesse ser o meu trabalho.
- Nessa fase surge a oportunidade Benfica. Foi fácil dizer 'sim'?
- Quando foi para decidir, eu não imaginava que a mudança para Lisboa fosse tão difícil. Os primeiros dois anos foram complicados na adaptação, pela falta da família, não estava à espera que fosse assim. Mas foi tudo por algo que eu queria muito e que sentia ser uma oportunidade. Na Ilha não temos futebol feminino suficientemente bom para desenvolver o nosso trabalho, e senti que não podia desperdiçar essa oportunidade e decidi embarcar nessa oportunidade.
- A família reagiu bem?
- Não foi fácil, nem para mim, nem para eles. Mas eles também sentiram que não queriam que eu perdesse a oportunidade e apoiaram-me sempre na minha decisão.
- Sai dos Açores e acredito que chega a um Benfica recheado de qualidade. Qual foi o impacto?
- Não estava mesmo nada à espera que houvesse tantas meninas e tanta qualidade no nosso país. No início foi um choque, mas fui-me habituando. Mas também acredito que ter jogado com rapazes até aos 14 anos foi bom para o meu desenvolvimento.
"Tenho professores que vão aos meus jogos"
- Passou quatro anos no Benfica. De que maneira é que o clube encarnado a ajudou a construir este seu sonho?
- Foi no Benfica que comecei a ter o lado profissional no futebol, a ser desportista. Ajudou-me imenso naquilo que estou a tentar fazer. Aprendi muitas coisas nesses quatro anos.
- Difícil fechar esse capítulo?
- Foi uma decisão muito, muito pensada. Foi muito difícil de tomar. Foi também pela parte desportiva, claro, porque eles têm um grande investimento aqui nos Estados Unidos, mas também para conseguir conciliar melhor os estudos com o desporto. Em Portugal não é impossível, mas é muito desgastante para quem quer estar a 100% em ambos os lados, e eu quero muito estar a 100% em tudo o que faço, e estava a ser difícil conciliar. Surgiu esta oportunidade, e a forma como conciliam o estudo com o desporto é algo incrível. Depois de pensar muito, decidi que não podia perder a oportunidade.
- Dos Açores para o Continente, depois do Continente para os EUA. Como foram os primeiros tempos?
- Em termos de condições, foi melhor do que estava à espera. É um mundo completamente diferente e só quem está aqui consegue perceber o quão grande é. Em termos académicos também, é uma forma diferente de conciliar os dois mundos. Em termos pessoais, não foi tão difícil como a primeira mudança para Lisboa.
- Para quem não conhece nada sobre o futebol universitário, fale-nos sobre o conceito de ser jogadora-estudante nos Estados Unidos?
- Estamos inseridos num clube, mas o clube tem uma parte académica. Tratam de tudo, temos treinos de manhã, falam com os nossos professores por causa dos treinos, tratam mesmo de tudo em conjunto. Eles apoiam realmente o desporto. Tenho professores que vão aos meus jogos, tenho uma professora que tem a camisola e está sempre lá nas bancadas a apoiar. É um estilo de vida completamente diferente. É gigantesco. O futebol americano é realmente absurdo. Temos de passar por momentos assim para refletir sobre aquilo que estamos realmente a viver.
- Como descreve o seu dia?
- Normalmente, tenho aulas de manhã, depois temos a cantina dos atletas, onde podemos tomar pequeno-almoço, almoçar e jantar. Venho descansar e começamos os treinos com reuniões e parte do vídeo. Há dias em que temos ginásio antes das aulas. E é um bocado assim.
- E a universidade não tem só futebol...
- Temos futebol, futebol americano, beisebol, basquetebol feminino e masculino, voleibol feminino, atletismo, ténis masculino e feminino... Bem, é capaz de me faltar alguma (risos).
- Muitas nacionalidades?
- Muitas, muitas. Há muitos estudantes internacionais, mesmo aqueles que não praticam desporto. A equipa de ténis, por exemplo, é quase toda de fora.
"Tentei escolher a universidade que se adequava mais ao meu jogo"
- Encontrou um futebol muito diferente?
- O futebol é realmente diferente do que estamos habituados na Europa. Mas, quando foi para escolher a universidade, tentei escolher aquela que se aproximava mais do que temos e do que podia ser bom para o meu jogo. Não é igual, mas é muito parecido com o que estava habituado.
- Outros desafios que tens tido?
- A parte da alimentação é muito diferente. Tento sempre manter algo parecido, mas é realmente uma diferença grande. Mudar de equipa também nunca é fácil, entrar num novo grupo, ganhar espaço e tempo de jogo. Com o tempo, vai-se lá.
- E já conquistou o seu espaço?
- Sou uma pessoa tímida, não sou muito fácil de criar amizades, mas a equipa foi muito aberta à minha chegada e, a cada dia que passa, vou ganhando cada vez mais o meu espaço. Depois deste primeiro ano, vai ser tudo normal.
- Como é dinâmica em dia de jogo?
- É algo a que não estava habituada. Vivem o desporto universitário de forma diferente. No dia do jogo, há cartazes, prémios à volta do jogo para atrair o público. E este ano foi um ano de recordes. Nunca tivemos tanta adesão aos jogos. É uma comunidade pequena, mas cada vez mais pessoas de fora vão ver os jogos. Os professores vão ver os jogos... É incrível. (…) Estou na minha residência, e aqui ao lado tenho uma espécie de Estádio da Luz, com 60 mil lugares, e está sempre cheio para os jogos de futebol americano.
- Algum choque em termos culturais?
- A verdade é que a cidade onde estou agora vive muito para a universidade. É uma cidade muito pequena, não se compara nada com Lisboa. É mais pequena que a minha cidade em São Miguel. Portanto, não foi um choque muito grande.
"Vir para os Estados Unidos foi a melhor decisão"
- A sua equipa - Mississippi State Bulldogs - sagrou-se campeã da fase regular pela primeira vez da fase regular, talvez com a sua estrelinha portuguesa (risos). Como apresenta o campeonato universitário?
- Processo muito complicado (risos). Nós temos o campeonato regular (16 equipas), em que jogamos contra as equipas da nossa conferência. É como se fosse um campeonato em qualquer país europeu. Ganhamos o nosso, depois temos uma espécie de Taça da Liga. As equipas do nosso campeonato competem num quadro competitivo. Quem ganha continua, quem perde vai embora. Agora vamos ter uma espécie de Champions. As 64 melhores equipas do país fazem um torneio a eliminar (NCAA). E nós, por termos tido uma prestação tão boa, só com duas derrotas, somos as primeiras cabeças de série e vamos receber os jogos em casa até às meias-finais, se chegarmos lá, claro.
- Para que se perceba a dimensão, qual foi a maior distância que percorreram na fase regular?
- Fizemos de avião. Se fosse de autocarro, talvez 10 horas.
- Incrível! E como serão os próximos anos?
- Não estou a pensar em mudar de universidade. Quando corre bem, acabamos por ficar os quatro anos normais (do curso). Mas a qualquer momento posso entrar no portal de transferências e mudar-me. Vou atrás de bolsas e daquilo que me oferecem, é como um clube na Europa, mas o normal é fazer os quatro anos e tirar o curso.
- Sei que ainda não passou muito tempo, mas para quem conhece a Inês dos tempos do Benfica, sente que o seu futebol é diferente agora?
- O futebol a que estamos habituados é de posse, bola no pé e querer jogar. Aqui, a equipa quer isso, mas muitas vezes tem aquele futebol mais direto, mais físico, e ainda me estou a habituar. Acho que já melhorei imenso na parte física e defensiva, mas a Inês que estavam habituados no Benfica nunca vai mudar. Sou o tipo de jogadora que sou, e em qualquer sítio que vá, é isso que vou tentar fazer.
- Ficou surpreendida com a qualidade que existe nos EUA?
- Sim, principalmente pela parte atlética. Em Portugal, é o que nos falta para dar o grande passo na Europa e a nível mundial. Elas estão muito avançadas. Vemos jogadoras muito rápidas, fortes e que são boas com a bola. Nós somos muito boas com a bola em Portugal, mas falta a parte física para dar o passo acima.
- Olhando para tras, foi a melhor decisão ir para os EUA?
- Foi. Não é fácil ser uma atleta nova, existe uma diferença para as seniores, temos menos tempo de jogo, mas acho que realmente foi a decisão certa para conciliar os estudos e o futebol, sem perder nenhum dos dois.
"Temos mais do que qualidade para fazer o que eles fazem aqui, mas..."
- A família lida bem com esta distância?
- A família estava habituada, e a minha irmã também fez o mesmo percurso, mas no ténis. Esteve aqui seis anos. Portanto, já estão um pouco habituados (risos) e hoje com a tecnologia o contacto é muito facilitado.
- Pensa sobre o futuro depois destes quatro anos que conta passar nos EUA?
- Na minha cabeça, é voltar à Europa e ser profissional.
- O que espera que esta experiência lhe dê para esse tal futuro?
- Experiência. Tinha algo seguro em Portugal, mesmo que não fosse o que queria por não estar numa equipa principal, e sabia que tinha aqueles anos, mas viver estes diferentes tipos de futebol e de jogo vai ajudar-me e trazer um leque de opções e novas experiências no futuro.
- Qual a sua opinião sobre o futebol português?
- É óbvio que tem muito potencial. Temos mais do que qualidade para fazer o que eles fazem aqui, não temos é as condições necessárias, não temos o investimento, que é de loucos. Acho que é o que falta em Portugal.
- E a Seleção?
- Sempre foi um objetivo representar a Seleção. Para todas que querem ser profissionais, a Seleção é o objetivo, e chegar lá é incrível. Representei quase todos os escalões e o sentimento de orgulho é imenso, e quero muito chegar à seleção A. (...) Temos uma Seleção muito, muito boa, e jogamos um bom futebol. As condições não são as mesmas que em Espanha, Inglaterra ou EUA, mas com o trabalho, somos um povo muito trabalhador, e conseguimos alcançar o nível deles.
- Sente esse 'peso' de ser uma representante de Portugal (e dos Açores) fora do país?
- É sempre especial. Temos bandeiras dos diferentes países nos nossos jogos e ter a bandeira de Portugal é sempre emocionante. É um orgulho ter esse papel. Depois acredito que possa ser um exemplo para as meninas mais novas, um exemplo de que elas podem conseguir. Não é por serem de um lugar mais pequeno que as portas se fecham. Se trabalharem, podem chegar a lugares mais longe. Não precisam de seguir outros caminhos só porque não é tão fácil na nossa região.