Entrevista Flashscore a Paulo Gomes: "Brasil tem jogadores de qualidade em todas as divisões"
Geraldão, Raí e Sócrates. Algumas das figuras mais marcantes da história do Botafogo Futebol Clube, clube sediado no estado de São Paulo que procura regressar ao topo do futebol brasileiro. Para isso, confiou em Paulo Gomes, treinador português de 48 anos, que atravessou o Atlântico para continuar a viver a sua paixão num país também ele muito apaixonado pelo desporto-Rei.
A viver dias intensos em território brasileiro, Paulo Gomes tirou um tempinho do seu tempo para conversar com o Flashscore sobre o seu mais recente projeto, sem esquecer a importância das passagens por Arábia Saudita e Luxemburgo. Foi, aliás, no Grão-Ducado que deu início à sua carreira de treinador e percebeu que a sua metodologia funcionava junto dos jogadores.
Entre elogios ao compatriota Abel Ferreira (e também a Jorge Jesus), que vai defrontar já este sábado, dia 9, o técnico revelou em exclusivo os objetivos do Botafogo-SP para Serie B e Taça do Brasil em 2024.
"Encontrei um clube extremamente organizado"
- Qual o balanço dos primeiros meses de trabalho no Botafogo-SP?
- Estão a ser muito intensos. O Paulista é uma competição muito exigente, com 12 equipas, em que descem duas, e onde jogas contra equipas de topo do futebol brasileiro e em que as de menos nomeada se reforçam muito bem para esta competição. Precisas de estar no teu melhor nível para poder fazer bons resultados e tens de ter alguma sorte com lesões e castigos. O nosso primeiro objetivo era alcançar a manutenção, pois o clube está há 16 épocas consecutivas na primeira divisão do Paulista, e conseguimos.
- Como surgiu a possibilidade de ir trabalhar para o Brasil?
- No ano em que fui campeão no Al Khaleej já tinha sido sondado por um clube da Serie A. As pessoas queriam que eu saísse para vir logo para cá, mas decidi terminar a temporada na Arábia Saudita e fechar com o título de campeão. Depois as coisas não aconteceram e aconteceram este ano. E ainda bem!
- Que clube encontrou?
- Encontrei um clube extremamente organizado, que é uma SAF, com pessoas extremamente profissionais e com diretores com títulos na carreira ao serviço de grandes clubes. A adaptação foi rápida, até porque já tinha vindo até ao Brasil para estudar e perceber um pouco da cultura, sobretudo como nascem e são trabalhados aqui os talentos.
- O Botafogo realizou sete jogos em 25 dias durante o mês de fevereiro. Como é viver no meio desta adrenalina?
- É brutal. Já tinha passado por algo parecido na época da pandemia na Arábia Saudita, que também é um país grande e tínhamos jogos de três em três dias. Mas de facto é bastante duro. Jogas contra equipas como Santos, Corinthians, RB Bragantino e Palmeiras, e os jogadores têm picos de adrenalina maiores. Os jogos exigem mais do estado emocional e isso é mais difícil de recuperar. Quando tens apenas três dias para o próximo jogo, até em termos de plano estratégico fica mais complicado. Mas está a ser uma experiência espetacular.
- Como se prepara uma equipa para uma densidade competitiva tão acentuada? Muito desafiante?
- Só dá praticamente para recuperar. Imagina: tens um jogo a 4/5 horas de distância, chegas por volta das duas da manhã, depois tens a recuperação e a seguir já estás a planear a estratégia para o próximo jogo. Para nós, staff, não há descanso, é só mudar o chip de um jogo para outro. É extremamente difícil. Não dá sequer para ficar focado nos erros. É meter uma pedra em cima deles e seguir para o próximo. Posso revelar que para o jogo da Taça do Brasil viajamos sem ter feito nenhum treino.
- O Brasil é um continente dentro de um continente, um país que transborda paixão pelo futebol. O que lhe chamou mais atenção no futebol brasileiro?
- A paixão exacerbada que têm pelo futebol, sobretudo os adeptos. Na Europa olha-se muito para o resultado, mas ainda se dá uma boa margem para os treinadores. Nas últimas realidades em que estive (Arábia Saudita e Brasil) não tens muito tempo. Ou apresentas resultados ou estás fora. Costumo dizer que na Arábia a margem são três jogos. Se não ganhas, estás fora. É preciso tempo e há vários exemplos, também aqui, de treinadores a quem foi dado esse tempo e que apresentaram bons resultados. Posso falar do treinador do Novorizontino, do Inter de Limeira, do São Bernardo e do próprio Abel Ferreira no Palmeiras. O tempo é que nos permite ter um conhecimento profundo do que temos à disposição para implementarmos as nossas ideias e a nossa forma de trabalhar no contexto em que estamos.
- Costuma dizer-se que os treinadores trabalham no fio da navalha no Brasil. Como é trabalhar no meio dessa cobrança e exigência?
- É muito difícil. Dou o exemplo do Luís Castro, em que as coisas nao correram bem no início (no Botafogo do Rio de Janeiro) e ele foi bastante cobrado. Pediram para ele sair, mas deram a oportunidade de continuar o seu trabalho e quando sai era líder do Brasileirão. Há uma coisa clara para mim: Nós somos os principais beneficiários quando as coisas correrem bem, que ninguém se esqueça disso. Logo somos os primeiros a querer que tudo corra bem. Por vezes demoramos a encontrar soluções, mas isso acontece em todas as profissões. As pessoas têm de entender isso e olhar para o futebol de forma mais racional, sem nunca perder a paixão e emoção, claro, porque sem isso o futebol morre.
- Temos assistido à ida de vários treinadores portugueses para o Brasil. O que sente que o treinador português pode acrescentar ao futebol brasileiro?
- Não sou muito de modas. Tenho trabalhado sempre fora de Portugal e gosto de perceber se o treinador é competente ou não. O que eu vejo é que em termos de metodologia, até pela forma apaixonada como vemos o futebol e a nossa profissão, poderemos aqui ou ali ser um pouco mais focados. Tenho no meu staff alguns brasileiros que me dizem que devo descansar mais em alguns momentos. Eu digo que não consigo (risos). Muitas vezes chego aqui às 7:00 e saio às 21:00. Mas não digo que a nossa metodologia seja melhor ou pior, porque existem muitos bons treinadores brasileiros. (...) Assim como os treinadores brasileiros foram para Portugal no passado e levaram algo novo, agora são os portugueses a trazer algo para cá. Vejo isso mais como uma forma de intercâmbio de ideias novas.
- Os jogadores do Botafogo-SP reagiram bem à sua metodologia?
- A aceitação foi muito boa e eu gosto muito de trabalhar com eles. Graças a Deus tive sempre uma boa aceitação dos atletas em todos os sítios por onde passei. Em termos de processo de jogo eles captaram bem as ideias. Infelizmente, neste mês de fevereiro, as coisas não correram tão bem porque não treinamos, foi só mesmo recuperar. Sete jogos em 25 dias é estratosférico e isso leva a que eles possam errar algumas vezes na tomada de decisão. Mas, reforço, a aceitação tem sido incrível.
"Justiça seja feita ao Abel e ao Jesus"
- Depois de um mês infernal, houve tempo para descansar e preparar o duelo contra o Palmeiras, do Abel Ferreira. O que está a preparar para contrariar aquela que é para muitos reconhecida como a melhor equipa brasileira dos últimos anos?
- É uma honra enorme poder defrontar a equipa do Abel. Reconheço que estamos (eu e outros portugueses) cá também devido ao que foi feito pela equipa do Jorge Jesus e depois pelo Abel. Justiça seja feita aos dois. Sobre o jogo com o Palmeiras, estamos a trabalhar normal. Nós já temos a nossa situação definida, portanto queremos dignificar o nome do Botafogo, fazer uma boa partida e continuar a trabalhar a nossa forma de jogar, sabendo que temos pela frente a melhor equipa brasileira. Estamos com alguns problemas de lesões, mas creio que vamos apresentar uma boa equipa para este teste de fogo.
- O que o Abel tem feito tem sido extraordinário...
- Visto da parte de dentro fica ainda mais impressionante. Defendo que nem tem sido dado o devido valor ao que eles têm feito, ele e a sua equipa técnica, porque a exigência que é colocada, a competitividade que tens de ter para ganhar jogos, é gigante no Brasil. O que eles estão a fazer é brutal e tiro o meu chapéu.
- O Paulista está a terminar e o Botafogo-SP alcançou a manutenção. Missão cumprida. Mas o que se segue? Quais os objetivos do clube para a Taça e para o Campeonato?
- O objetivo era conseguir a qualificação para a próxima fase (do Paulista), porque sou um eterno insatisfeito. Independentemente de saber que ia jogar contra equipas de Serie A e de que fizemos um plantel em três semanas, eu queria ganhar todos os jogos. (...) Conseguimos formar um plantel equilibrado, em que tivemos um ou outro equívoco, além de um problema com o nosso 9, e o objetivo mínimo foi conseguido. Foi isso que me foi pedido.
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- Em relação à Taça conseguimos passar a primeira eliminatória com uma vitória. Foi a primeira vez na história do clube em que passou a primeira eliminatória com uma vitória, uma vez que o empate também dava. O Brasil tem imensos jogadores de qualidade em todas as divisões. É incrível a quantidade de jogadores brasileiros com qualidade, parece que nascem na rua (risos). A seguir temos a 2.ª eliminatória, jogamos em casa e temos a ambição de seguir em frente. Em relação à Serie B, a fasquia está elevada por parte da Direção. Eles gostavam de subir à Serie A e o clube está a tentar criar essa estrutura por trás para tentar. Temos de melhorar o plantel e da nossa parte vamos fazer tudo para ter êxito.
- Está satisfeito com o que encontrou a nível de infraestruturas?
- O clube dá todas as condições e tem tudo o que é necessário. O estádio tem vindo a ser remodelado, existe um hotel para os jogadores e um refeitório sempre disponível. É preciso melhorar a estrutura de apoio em termos de campos, mas o clube sabe disso e está a pensar num CT (centro de treinos) para breve. Em suma, estou satisfeito com aquilo que tenho à disposição.
- Raí e Sócrates são duas figuras lendárias na história do Botafogo-SP. Esse passado está muito presente na vida do clube?
- O clube não deixa morrer essas pessoas. Por exemplo, no jogo contra o Corinthians, o clube homenageou o Sócrates ao colocar uma foto gigante no círculo central. Também é algo que está presente nos murais e sei que o Sócrates vai ter uma rua com o nome dele em breve. São figuras sempre relembradas.
- Quem ainda nao viu jogar o Botafogo-SP, o que vai poder encontrar? O que nunca irá faltar à uma equipa do mister Paulo Gomes?
- Qualidade de jogo acima da média e vontade de ganhar enorme, sabendo sempre que estamos dependentes das armas que temos à disposição. O Guardiola disse há tempos uma coisa que me deixou a pensar. Perguntaram-lhe se a equipa dele jogava melhor porque tinha o Haaland e o De Bruyne e ele respondeu que a equipa dele marcava mais golos e fazia mais assistências. Ou seja, podes ter qualidade de jogo muito interessante e a tua equipa jogar bem, mas ganhar é outra história.
Do Luxemburgo à Arábia: "Sou um cidadão do Mundo"
- O Paulo iniciou o seu percurso como treinador no Luxemburgo e depois teve experiências na Arábia Saudita. De que forma é que elas ajudaram a definir o seu caminho no mundo do futebol?
- Tive a felicidade de ter bons treinadores como jogador. Tive um que me marcou muito, como homem e treinador, que foi o senhor Ulisses Morais. Eu tinha 24 anos e ele dizia, nessa altura, que eu ia ser treinador. Muito do que sou veio das minhas vivências como jogador, daquilo que percebia em campo, do que precisavamos de fazer em campo e nao fazíamos, daquilo que fazíamos e tínhamos de melhorar, daquilo que via que não estava correto... Digo sempre que o Luxemburgo foi uma incubadora. Foi ali que experienciei a minha forma de trabalhar. Foi no Luxemburgo que percebi que funcionava a minha interação com os jogadores. Foi ali que percebi que a aceitação à metodologia era top.
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- Percorri o meu caminho até chegar à primeira liga e bater o campeão Dudelange, que na altura estava nas competições europeias e era treinado pelo Dino Toppmöller. Ganhámos 1-4 na casa deles. Depois sabia que, mais cedo ou mais tarde, teria de sair para outros campeonatos para me meter à prova com os melhores. Assim foi até sairmos para a Arábia Saudita, onde fomos campeões na segunda liga, um trabalho que pouco ou nada foi divulgado.
- Surpreende-o o que está acontecer na Arábia?
- Não falta poder económico na Arábia. No primeiro projeto percebi claramente o que eles pretendiam no processo formativo. Vi que há uma envolvência financeira muito grande na formação e procuram muitos treinadores europeus. No entanto, na minha opinião, existe algum equívoco nesse capítulo, que é o focar no resultado, mesmo na formação. Depois não conseguem dar muita sequência ao projeto de formação e rompem contratos, metodologias e castram a evolução do jogador. Mas o jogador saudita tem muita qualidade e o campeonato evoluiu muito. Já se praticavam valores muito altos na minha altura, agora passaram a valores estratosféricos. Estão a investir muito e creio que vão organizar um bom campeonato do mundo.
- O desenvolvimento do processo de formação pode ser o calcanhar de aquiles?
- Creio que sim. O futuro do futebol é a formação. Como aparecem os grandes craques? Da formação, não nascem feitos. Se formas bem e consegues dar sequência, esse vai ser o futuro do futebol. Se a parte financeira regredir, a qualidade vai ser tão mais alta quando maior for a qualidade na formação dos atletas.
- Voltando ao Brasil. Trata-se do encontro de duas paixões? A que existe no país e a do Paulo por este desporto?
- A partir do momento em que saí de Portugal, eu considero-me um cidadão do mundo. Posso trabalhar no Luxemburgo, na Arábia, no México... Sou simplesmente um profissional apaixonado pela minha profissão e admito trabalhar onde as pessoas vejam qualidade no meu trabalho. Profissionalismo vão ter sempre a 100%.
"Portugal? Eventualmente, gostava de ter essa oportunidade"
- A possibilidade de trabalhar em Portugal está no seu horizonte?
- Sou treinador português, considero-me português, pois os meus pais são portugueses e eu vivi 30 anos da minha vida em Portugal. Eventualmente, gostava de ter essa oportunidade, se as pessoas acharem viável ou interessante que eu possa acrescentar, dentro também daquilo que eu pretendo para mim. Se não é vida que segue e há outros países e clubes para trabalhar.
- Por fim, o que espera que esta aventura lhe dê do ponto de vista pessoal e profissional?
- É mais uma experiência numa cultura diferente. Oportunidade para perceber vivências, o que gostam e não gostam. Espero ter alguma estabilidade, aquela que tenho tido até agora. É isso que procuramos: projeto estável. E existe um projeto aqui, algo baseado em trabalho e processo. Espero que assim continue e que possamos trazer os resultados que o clube pretende.