Entrevista Flashscore a Nené: "As pessoas vivem muito o futebol, dá prazer jogar na Polónia"
Rui Filipe da Cunha Correia. É este o nome completo de Nené, como tão bem é conhecido no mundo do futebol. Aos 28 anos, o médio português vive uma fase feliz em solo polaco ao serviço do vice-líder Jagiellonia Bialystok, depois de três temporadas no Santa Clara, onde concretizou o sonho de jogar no principal escalão do futebol português.
Mas antes de chegar ao dia de hoje com sete golos e três assistências nos 21 jogos realizados na presente temporada, pulverizando os números da época transata, a primeira na Polónia, Nené teve de suar muito para atingir o topo.
O orgulho da Graciosa, ilha situada no extremo noroeste do Grupo Central do arquipélago dos Açores, esteve três temporadas no Campeonato de Portugal (3.ª divisão portuguesa) antes de ter a oportunidade de uma vida aos 24 anos.
A passagem pelo Santa Clara abriu-lhe as portas da Polónia e tem sido "feliz". O objetivo, se possível, claro, é fazer história e deixar a família ainda mais orgulhosa do seu trajeto.
"Não queria desiludir ninguém na Graciosa"
- Como é que o futebol aparece na sua vida?
- Tinha sete/oito anos quando comecei a ir ver os treinos do meu pai e depois inscreveram-nos nos infantis do Guadalupe, na Graciosa. Foi aí que começou a aparecer o bicinho e foi aumentando com o passar dos anos. Era uma criança e só queria desfrutar de jogar à bola.
- Pelo meio dessa passagem pelo Guadalupe, vem para o Sintrense. A que se deveu essa mudança para o Contienente?
- Foi na altura em que os meus pais se divorciaram e a minha mãe quis tentar uma vida nova em Sintra. Eu tinha 11 anos e acabámos por ir para casa dos meus tios. No entanto, no primeiro ano por lá a minha mãe acabou por voltar para a Graciosa. Eu como estava a gostar muito e o treinador tinha dito à minha família que eu tinha algum jeito e podia ser alguém no futebol, pedi para ficar com os meus tios. Ou seja, abdiquei de voltar para a Ilha e fiquei com os meus tios, a quem agradeço muito, pois acolheram-me muito bem.
- Mas acaba mesmo por voltar à Graciosa.
- Antes disso o meu pai ainda abdicou da sua vida na Ilha para vir ter comigo. O treinador (do Sintrense) tinha ligado para ele e o meu pai tinha o sonho de eu conseguir chegar a profissional, então veio viver comigo para Sintra. Mas as coisas na altura não eram fáceis e teve de voltar para a Ilha. Eu gostava muito de estar com os meus tios, mas não era a mesma coisa. A saudade bateu mais forte e acabei também por voltar para casa. Mas a história não ficou por aí.
- Mais três anos no Guadalupe e mudança para Braga. Como surgiu essa oportunidade?
- Tinha um treinador no Guadalupe, o Luís Guerreiro, que conhecia o sr. Agostinho Oliveira, que na altura era o responsável pela academia do Braga, e disse-lhe que tinha um miúdo para lá ir à experiência. Treinei e fiquei. Ainda vim de férias à Graciosa, mas apresentei-se na pré-época sozinho. Não foi fácil, mas tive sempre uma grande força de vontade.
- Como olhava por o futebol nessa fase? É aí que percebe que pode chegar a profissional?
- Fui com a ilusão de que podia chegar lá (ao profissional). Ainda era muito novo e não tinha bem a noção de como tudo funcionava, mas rapidamente percebi a dificuldade. Felizmente, tive a sorte de ter colegas de equipa que ainda hoje são meus amigos, como o Artur Jorge, o Tiago Sá e o Reko, que me ajudaram muito, tanto eles como as suas famílias, e foi desfrutar. Era um adolescente, mas tinha sempre esse objetivo em mente, porque tinha muita gente da minha ilha a olhar e a torcer por mim. Como vinha de um meio pequeno, também tinha algumas pessoas a torcer para que não desse certo, só que isso ainda me dava mais força. Só pensava que quando fosse à Graciosa tinha de ir cabeça levantada, sem desiludir ninguém. Isso tudo deu-me força para continuar.
"Tive de descer três degraus para voltar a subir"
- Acaba a etapa em Braga e vai para Montalegre. Acredito que terá encontrado uma realidade bem distante, mas o pensamento era em torno do que tinha de fazer para voltar ao topo?
- Sinceramente, foi quando percebi que o futebol nao é facil. Muitos que fazem formação em clubes como SC Braga, Sporting, Benfica e FC Porto não consguem chegar lá (ao futebol profissional), mas eu não sabia fazer mais nada e só queria jogar futebol. Como não estava com muitos jogos na equipa B do Braga foi complicado aparecer um clube de nível superior, então acabei por ir para o Montalegre. Tive de descer três degraus para voltar a subir. Felizmente, consegui.
- Passa três épocas no Campeonato de Portugal (Montalegre e Fafe). Ficava frustrado quando chegava o final de época e não conseguia dar o tal salto?
- Não foi fácil. Muitos continuam à espera que isso aconteça. Eu tive a sorte do meu antigo agente (Nuno Correia) pegar em mim e falar com o Diogo Boa Alma, então diretor desportivo do Santa Clara, e acabei por ir para lá.
- Percurso de altos e baixos, com alguns contratempos. Como resume a passagem pelo Santa Clara? Mais coisas positivas?
- Houve alguns problemas negativos na direção, mas tínhamos um bom grupo e não deixávamos que esses problemas entrassem para dentro da equipa. Não era um clube com as condições de outros da Liga, mas ter passado por Montalegre e Fafe fez-me perceber que a realidade era boa no Santa Clara. Adorei lá estar. Era um clube da minha região e fiquei muito orgulhoso por vestir aquelas cores.
- Ainda se recorda da sensação da estreia na Liga?
- Uma sensação incrível. Sempre ambicionei chegar à Liga, mas sabemos que é difícil. Só o facto de poder assinar já foi algo extraordinário para mim, família e para as pessoas da Graciosa, pois era algo que nunca tinha acontecido. Sinceramente, nem sei explicar muito bem.
"Talvez ainda possa ser campeão na Polónia este ano"
- Fecha-se essa etapa e segue-se um desafio no estrangeiro. Era algo que ambicionava?
- Com a chegada à Liga, novos objetivos surgem na tua vida e estava curioso para experimentar algo no estrangeiro. Tinha acabado o contrato no Santa Clara e proporcionou-se o Jagiellonia. Tive proposta para renovar pelo Santa Clara, mas ia haver muitas mudanças no clube. Portanto, não pensei duas vezes e preferi aventurar-me na Polónia.
- Que realidade encontra no futebol polaco?
- Sinceramente, estou a adorar a experiência. Não me arrependo de nada, pois está a correr lindamente. As pessoas são mais frias, mas sempre me respeitaram e acolheram bem. É uma cultura diferente, alimentação diferente, a nossa é melhor, mas nao passo fome (risos).
- Correu bem a adaptação?
- Lembro-me que tive algumas dificuldades para apanhar o ritmo nos primeiros jogos. Os jogos são muito partidos e tinha de correr de um lado para o outro. Chegava ao intervalo a dar o berro. Mas com o tempo fui percebendo melhor as zonas que devia ocupar e hoje corro 11-12 km por jogo e está tudo bem. Claro que fico cansado, mas já estou adaptado.
- A época ainda vai longe do fim, mas o Nené já superou o registo de golos da temporada passada. O que dizem estes números?
- A minha vida tem sido de mudança e adaptação constante, por isso não foi difícil adaptar-me aqui e isso tornou tudo mais fácil para mim. Também nesta segunda época houve mudança de treinador, algo que nos veio ajudar muito. Jogamos num sistema que faz com que tenha melhores números e a equipa joga muito bem, com uma mentalidade diferente e vencedora. Vamos ver até onde conseguimos ir. Quem sabe se não possa ser campeão na Polónia.
- Para quem vai ler a entrevista e não conhece bem a realidade, como é que joga o Jagiellonia?
- Praticamos um futebol apoiado desde o guarda-redes, com quatro defesas baixos, dois médios juntos à frente da defesa e com dois extremos projetados e largura máxima. A meu ver é um sistema que dá muito bom resultado, porque conseguimos sair a jogar de várias formas, consoante a postura do adversário. Se forem ver os nossos resultados, percebem que ganhamos muitas vezes em casa por quatro golos e toda a gente gosta de golos. Aqui têm falado muito bem da nossa mentalidade e atitude em campo. Não há transmissão em Portugal, mas, se algum dia tiverem curiosidade, não se vão arrepender.
- Em termos de condições estruturais, é muito diferente da realidade que vivia em Portugal?
- Fiquei surpreendido. Temos condições muito boas: centro de treino é muito novo, relvado top e as condições de balneário e treino são top. Depois as pessoas vivem muito o futebol e criam ambientes hostis em praticamente todos os estádios. Dá prazer jogar aqui, porque te faz sentir mais jogador.
- Em Portugal temos Benfica, Sporting, FC Porto e, agora, SC Braga a lutarem pelo título. É mais equilibrado na Polónia?
- Aqui as equipas são mais niveladas, não pelo nível alto que há em Portugal, mas há muito mais equilíbrio. Este ano a equipa que vai em primeiro (Slask Wroclaw) salvou-se da despromoção nas últimas jornadas da temporada passada e nós estamos agora em segundo e no ano passada andamos a lutar pela manutenção. Aqui não é fácil ganhar os jogos, só com uma organização um pouco diferenciada, que é algo que o nosso treinador trouxe para este ano. Estamos a surpreender as outras equipas.
- Sente que a vossa equipa tem capacidade para manter os lugares cimeiros?
- Os nossos adeptos começam a acreditar que é possível, mas vai ser difícil. Na época passada tivemos o caso do Wisla Plock que na primeira parte do campeonato andou nos primeiros lugares e depois acabou por descer de divisão. Sabemos que isso é uma possibilidade, mas acho que temos capacidade para manter o mesmo nível ou até fazer melhor. Agora sabemos que somos o alvo a abater e que os adversários vão dar 100% contra nós. E nós temos de de dar 200%.
- Vem aí a paragem de inverno. Que impacto pode ter nas contas do campeonato?
- É uma paragem longa (n.d.r. só voltam a jogar em fevereiro), que vai obrigar a uma nova pré-época, e temos o exemplo do Wisla, que depois da paragem acabou por descer de divisão. As equipas também se vão reforçar e isso pode mexer com muita coisa. Nós temos pessoas competentes a dirigir o clube e, pelo que ouvi, vão querer reforçar o plantel e não vão permitir saídas. Vamos ver como é que as outras equipas se vão comportar.
"Tenho de pensar na minha vida"
- Como é que a familia tem acompanhado esta jornada?
- A minha mãe e o meu pai vêem os jogos através de uma aplicação que permite comprar a transmissão dos jogos, mas muita gente acompanha pelas redes sociais ou pelo Flashscore.
- E como é a vida para lá do futebol?
- Assim que cheguei, tive a felicidade de ser recebido muito bem por um grupo de espanhóis da minha equipa e íamos comer muitas vezes fora. Agora arranjei uma namorada polaca e ela ajuda-me muito no dia-a-dia. Tem sido uma companhia fantástica.
- Quais os planos para o futuro?
- Na altura assinei um contrato de dois anos, com mais um de opção... Vamos ver o que acontece. Vim para cá com o intuito de chegar a um clube que me permitisse ser campeão e quem sabe se não sou campeão no meu primeiro clube na Polónia. Depois, não sei se vou para outro país ou não. A verdade é que vou fazer 29 anos e tenho de pensar na minha vida. Mas agora estou focado nesta época e em poder fazer história.