João Sidónio: "Não há nada melhor do que estar no nosso país, mas há clubes que não pagam o justo"
O futebol não é feito em linha reta para todos. Às vezes há curvas que criam certas dúvidas sobre o destino. João Sidónio é um exemplo de crença e superação.
Depois de passar pela formação do SC Braga, o central teve a primeira experiência no futebol sénior numa AD Oliveirense em polvorosa e saiu depois de dois meses sem receber "um cêntimo". Seguiram-se passagens por Liga Revelação e Campeonato de Portugal até entrar no histórico Varzim, onde passou mais uma fase de provação devido aos graves problemas financeiros dos Lobos do Mar.
"As pessoas não têm noção, mas cheguei a ficar quase quatro meses sem receber…". A tempestade, por fim, passou. João Sidónio recebeu uma proposta para emigrar e não pensou duas vezes. É hoje um dos destaques do Omonia Aradippou e falou sobre o bom momento em entrevista ao Flashscore.
"Não é fácil chegar a casa e não ter dinheiro..."
- Como é que o futebol aparece na sua vida?
- O meu gosto pelo futebol começou aos 4 anos. O meu irmão jogava num clube de Fafe, e lembro-me de ir com a minha mãe buscá-lo e começar a ganhar interesse. Lembro-me de o treinador do meu irmão sugerir que eu começasse a treinar. Então comecei a jogar, e um scout do Benfica ligou para a minha mãe para que eu fosse treinar no Estádio da Luz. Fui, e foi quando surgiu a criação dos CFT's (Centros de Formação e Treino), acabando por ir para o CFT de Braga, que era na Póvoa de Lanhoso.
- Quando é que percebe que o futebol podia dar em algo?
- Na formação, saí para o SC Braga e fiz quase toda a minha formação lá. Foi então que percebi que podia fazer vida do futebol e chegar a um nível em que isso fosse a única coisa que eu fizesse. No entanto, até chegar aqui, passei por muitas dificuldades, que me fizeram ser o homem que sou hoje. Passei por clubes e realidades completamente diferentes da que vivo agora, e isso também foi muito importante para mim.
- Muitas dificuldades?
- Não foi fácil, de forma alguma. No meu primeiro ano como sénior, eu ainda não entendia completamente o que era o futebol. Cheguei ao Campeonato de Portugal (CP) e lembro-me de jogar na AD Oliveirense sem receber sequer um cêntimo. Passados dois meses, fiquei sem clube. Tinha 18 anos, só queria jogar e ter minutos, mas acabei por me ver em casa, sem equipa. Entretanto, as oportunidades começaram a surgir e fui construindo o meu caminho, mas não foi nada fácil. Cheguei a jogar na Liga Revelação, voltei ao CP... Todos sabem os valores praticados nessa realidade, e não dá para sustentar uma vida. Mesmo assim, tentei fazer o meu caminho com o pouco que tinha, contando sempre com o apoio da minha família, e felizmente consegui fazer do futebol a minha vida.
- Acaba por ir para o Varzim, onde também vive uma realidade muito difícil...
- No ano passado, depois de finalmente conseguir viver apenas do futebol, passei por um período muito complicado a nível pessoal. Foi extremamente difícil. Como é público, passámos muito tempo sem receber, e foi graças à minha namorada e à minha família, que sempre me ajudaram e não deixaram que me faltasse nada, que consegui superar. As pessoas não têm noção, mas cheguei a ficar quase 4 meses sem receber, e pagar contas, casa, carro e viver assim, de modo geral, não é fácil. Muitas vezes, temos que reinventar-nos e buscar forças onde parece não haver. Não é fácil chegar a casa e não ter dinheiro... Mas olhando para isso, hoje dou muito mais valor ao dinheiro e à forma como o gasto, porque foi uma situação muito difícil, infelizmente.
Eu adoro o Varzim, adorei jogar lá, adorei a cidade, e sinto pena de ter passado por essas dificuldades enquanto estava no clube. Trabalho por amor ao futebol, mas o dinheiro é importante na vida de qualquer pessoa.
- Não receber e ter de ter força mental para jogar ao fim de semana... Como lidavam com isso?
- Acho que posso falar por todo o plantel: foi um verdadeiro desafio. Todos os dias chegávamos a perguntar quando iriam pagar. Houve uma fase, no início de janeiro, em que nem tínhamos direção e não havia a quem recorrer. A motivação financeira simplesmente não existia. Estávamos a trabalhar por nós e pelos resultados, e orgulho-me muito do caminho que percorremos. Só quem passa por estas situações sabe das dificuldades. Não vou entrar em pormenores, mas muita gente enfrentou sérias dificuldades. Fomos um exemplo. Tivemos aquele jogo com o Lourosa, com uma paragem de 1-2 minutos, que foi muito por apoio à comunidade do futebol.
Sem dinheiro, não conseguimos fazer nada, mas, mesmo assim, nos dias de treino, pensávamos que estávamos a fazer isso por nós. Depois, o Varzim acabou por pagar tudo, mas naquele período foi muito complicado. Valorizámo-nos muito mais. Fizemos grandes jogos e nunca nos deixámos ir abaixo. Houve semanas em que mal treinávamos a parte tática, porque as preocupações não nos deixavam pensar em mais nada.
- Houve algum momento em que tenha pensado em desistir?
- Acho que isso nunca me passou pela cabeça. Às vezes, o jogador reclama de tudo; temos esse defeito, mas, no fundo, temos a melhor vida do mundo, apesar das dificuldades. Lembro-me de trabalhar e jogar no meu primeiro ano como sénior, por exemplo. O caminho até aqui foi cheio de experiências e desafios. Tudo isso serviu para me calejar.
"Achei que estava na hora de vir para o estrangeiro"
- Depois da tempestade, surge oportunidade de ir para Chipre?
- Confesso que, depois do ano que passei e olhando para o panorama e a valorização do jogador português em Portugal, disse ao meu empresário que estava na hora de ir para o estrangeiro. Pensei não só a nível monetário, mas também em termos de visibilidade, já que poderia jogar num país contra equipas que disputam playoff's da Liga dos Campeões, da Liga Europa e da Liga Conferência. Passei de estar a jogar na Liga 3, com orçamentos muito baixos, para campeonatos com orçamentos de milhões, superiores aos de algumas equipas da Liga. Não pensei muito e percebi que, mais do que tudo, era a oportunidade de vir para uma primeira liga e mostrar o meu valor fora do meu país, onde sinto que não somos tão valorizados.
- Tem sido uma boa adaptação?
- Aqui faz muito calor; nunca vi nada assim. Lembro-me de chegar e pensar: 'Onde me vim meter?' (risos). Quando saí do aeroporto parecia que estava numa sauna. Nos primeiros treinos, enquanto treinava e falava com o Mika (Borges), as minhas mãos estavam completamente suadas, e era assustador (risos). Já não tenho muito cabelo, e estava a perder ainda mais. Não sei se foi do calor ou da ansiedade. Entretanto, chegou a minha namorada, e o meu cão também veio para cá. E eles são um grande suporte para mim. Também tenho o Mika e o mister, que também é português, e isso é uma grande ajuda.
Receberam-nos muito bem. Estive quatro jogos no banco, mas tive a felicidade de jogar e marcar nos últimos jogos. (...) Aqui lutamos contra equipas com orçamentos muito maiores do que os nossos, mas lutamos sempre de olhos nos olhos, e quem nos acompanhar vai perceber isso.
- Muitas diferenças do ponto de vista competitivo?
- Os meus colegas também têm qualidade, e isso facilita as coisas. Mas há mesmo muita qualidade nas ligas inferiores (em Portugal). Chegando aqui, trabalhando e aumentando a intensidade, nós adaptamo-nos e começamos a alcançar o nível das grandes equipas. É como o meu mister diz: o segredo está na preparação, na forma como trabalhamos as nossas ideias.
- Para quem não conhece, como apresenta o jogador cipriota?
- Tinha uma ideia muito vaga sobre o jogador cipriota, mas agora estou num plantel onde os jogadores cipriotas têm qualidade e são também pessoas muito boas, sempre dispostas a ajudar. O campeonato é diferente; as grandes equipas reforçam-se bem, no estrangeiro, com jogadores de renome que vêm acrescentar valor. O Pizzi, por exemplo, está no APOEL. Na minha equipa, cinco jogadores foram convocados para os sub-21 do Chipre, o que é um número bastante significativo.
- Recebem precisamente o APOEL, do Pizzi, do Max Meyer e do El Arabi, na próxima jornada. Como se prepara para um jogo desta exigência?
- Quando vi que o El Arabi ia jogar, comentei com o Mika que passámos de jogar na Liga 3, com todo o respeito, para enfrentar o jogador que conquistou a Liga Conferência no Olympiacos. É uma diferença brutal. Como nos preparamos? Tenho a felicidade de ter um treinador que analisa bem o adversário, e recebemos vídeos individuais. Depois, é preparar da melhor maneira, tanto física quanto mentalmente.
- O que espera que esta oportunidade lhe dê no futuro?
- Espero continuar a dar continuidade ao meu trabalho, jogando os próximos jogos até ao final da época e, no final, logo se verá. Mudei a minha forma de ver as coisas; olho mais para o presente, porque se não estiver bem agora, não estarei bem depois. Foco-me no dia a dia. Depois, se Deus quiser e as outras equipas quiserem, posso subir para um nível melhor e ter a oportunidade de jogar competições europeias, que é algo que eu quero muito.
- Como as pessoas vivem o futebol em Chipre?
- Há clubes que vivem a intensidade do futebol de forma muito fervorosa, enquanto outros nem tanto. É um pouco parecido com o que acontece em Portugal. Temos adeptos que sempre apoiam e puxam por nós. Mas estou habituado; no Varzim, tinha adeptos de primeira liga.
"Há bastante qualidade em Portugal"
- Agora como emigrante, qual é a sua visão sobre o futebol em Portugal?
- Sou portista e vejo prioritariamente o FC Porto, mas também assisto a muitos jogos da Liga 3 e do Campeonato de Portugal. A verdade é que fico a pensar que há bastante qualidade em Portugal e é estranho que muitas equipas da primeira e segunda liga não requisitem mais jogadores portugueses. No ano passado, tive a felicidade de jogar com Paulo Moreira, que foi para a primeira liga, e com o Léo (Teixeira) e o (Julián) Bonilla, que foram para a segunda liga; todos eles têm bastante qualidade. Devemos valorizar mais o jogador português. Temos ouro em mãos. Falo por mim: achei por bem sair para ter outro tipo de valorização. Não há nada melhor do que estar no nosso país, mas há clubes que não pagam o que é justo para aquilo que é a nossa vida.
- Estamos na pausa das seleções. Como olha para a seleção portuguesa? O Ricardo Velho, que foi seu colega no SC Braga, acabou por ser chamado...
- Para mim, é um orgulho. O Velho foi o meu guarda-redes do SC Braga e também lá está o Pedro Neto, com quem tive a oportunidade de jogar, além de mais alguns que deviam estar na calha, como o (Francisco) Moura. Acho que será o próximo a fazer parte. Em relação à Seleção, temos uma equipa de topo mundial e podemos fazer mais e melhor. Os últimos jogos da Liga das Nações foram melhores do que os do Euro. O futebol passou a ser mais ofensivo e, com a Seleção que temos, somos candidatos a ganhar um Mundial e um Europeu. O povo português é muito lutador, e se acrescentarmos trabalho à qualidade, Portugal estará muito à frente das outras seleções.
- O que gostava que dissessem sobre si no final da temporada?
- Que fiz uma boa temporada; fui um jogador consistente e bastante regular. Espero conseguir um contrato melhor e melhorar a minha vida, seja aqui no Chipre ou em Portugal, numa primeira ou segunda liga. Quero ter a oportunidade de jogar competições europeias, especialmente ouvir o hino da Champions.
- Jogar numa liga profissional em Portugal ainda é um objetivo?
- Já foi mais. Se acontecer, será algo que gostaria que acontecesse, mas não tenho isso na minha cabeça. Há outros caminhos a percorrer, e eu escolhi um caminho diferente. Acho que vou crescer mais como pessoa. Se um dia acontecer, de certeza que estarei mais preparado do que quando saí do Varzim.