Mafalda Barbóz subiu de divisão na Suécia: "No Malmö dão-nos tudo o que dão à equipa masculina"
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"Não esperava mais do que estou a viver". A vida sorriu a Mafalda depois dela ter sorrido à vida. Os últimos 17 meses (estão bem contabilizados na sua cabeça) foram sem uma única paragem competitiva e hoje desfruta de uma realidade ainda distante daquela que se vive no futebol português no feminino.
Aos 21 anos, e depois de uma passagem "muito feliz" pelo Valadares Gaia, a casa onde descobriu onde podia ser "especial", a jovem média portuguesa partiu para o histórico Malmö, da Suécia, que oferece t-o-d-a-s as condições para o sucesso. Assim mesmo, com todas as letras.
O emblema sueco regressou ao feminino em 2019 e atravessou todas os escalões até chegar no ano passado ao último degrau. Faltava apenas um passo para a elite. E está dado. Com a ajuda de Mafalda Barbóz, o Malmö caimbou a passagem para a primeira liga da Suécia e a internacional sub-23 lusa contou tudo em exclusivo ao Flashscore.
"Para mim é tudo fantástico, mas para eles é normal"
- Como é que surgiu esta oportunidade de ir para o Malmö, um histórico do futebol sueco?
- É muito engraçado. Até hoje, não consigo explicar como é que uma portuguesa chegou até aqui, no meio de tanta escolha, ainda para mais vendo o que existe em termos de jogadoras - grandes, fortes e intensas - comparativamente com aquilo que nós, portuguesas, somos. Acredito que o ano passado no Valadares Gaia e a presença assídua nas sub-23 ajudaram muito na visibilidade que ganhei. Até porque chegámos a jogar contra algumas colegas minhas. É mesmo porque a vida me queria aqui.
- Mas era algo que estava à procura?
- Antes de surgir a oportunidade, eu queria continuar a competir. Estava com um bom andamento, a gostar de competir e achava que era engraçado não parar. E aconteceu. Estou há duas épocas seguidas a competir sem parar.
- Encontrou no Malmö aquilo que tinha imaginado?
- Tinha na cabeça exatamente aquilo que encontrei. A nível de futebol, em termos de intensidade, físico e rapidez do jogo, também estava à procura de algo que fosse interessante para mim, começando a competir em contextos mais parecidos com aqueles que encontrava na seleção em jogos internacionais. Ao vir para cá, parece que tudo se alinhou: continuava a competir num contexto competitivo elevado e vim para o projeto que era o melhor e mais rico na Suécia.
Mas voltando à questão, sim, esperava tudo o que encontrei. Aliás, esperava que as condições fossem boas, mas não esperava que fossem tão boas como são. Também tive muita sorte, porque a minha equipa é uma das que joga menos o futebol sueco, que é mais direto e vertical. O Malmö joga com a bola no pé, muito focado no espetáculo e sempre com números. Ou seja, tive facilidade em encaixar na equipa.
- Fale-nos mais sobre esse tipo de condições?
- Temos um estádio nosso, com um relvado do melhor que há. Eles dão-nos tudo o que dão à equipa masculina: as instalações, balneários e roupas são um espetáculo. Posso pedir tudo e mais alguma coisa, e eles fornecem tudo. Eu até peço chuteiras. A roupa de aquecimento, sempre que muda para os homens, muda também para nós. Em Portugal, isto é um bocado impensável; não há essa disponibilidade e abertura.
Em relação ao estádio, como é antigo, eles querem demolir e construir um novo porque temos de ter um estádio igual ao dos homens. Para mim, é tudo fantástico, mas para eles é normal. Sinto que é uma questão cultural: tudo o que não temos igual aos homens, que é muito pouco, eles tentam dar igual, e elas batem o pé se as coisas não estiverem iguais. Para mim, até é estranho estar a pedir mais, quando, para mim, está ótimo. Depois, ainda tenho uma casa só para mim. Pensava que era por ser a única estrangeira na equipa, mas percebi que é o normal aqui. Não tenho palavras.
- E em termos de outras facilidades, como fisioterapia, ginásio e/ou nutrição?
- De um modo geral, temos várias pessoas disponíveis, mas eu sei que estou num grande clube. Tudo o que disser sobre o Malmö, a maior parte das equipas da primeira liga não tem. O clube investe e entrou mesmo a sério (no feminino), desde sempre, colocando todos os seus recursos para que consigamos subir à primeira divisão e à Europa.
Temos mais do que um fisioterapeuta, mais do que um preparador físico, temos um médico, vários treinadores e analistas. Temos acesso a vários campos, uma sala só de fisioterapia e um ginásio enorme. É tudo de grande qualidade. É uma cultura diferente, que faz com que as coisas sejam assim. Eu dou 10 anos para o Malmö estar no topo da Europa.
- Acaba por ser um pouco estranho para quem vivia uma realidade muito diferente, não?
- É verdade que estou mal habituada, porque temos ainda algum caminho a percorrer em Portugal, mas devemos realçar que não haverá nada como nós quando conseguirmos alinhar-nos desta forma. Quando comecei a jogar, não havia nenhum exemplo de futebol profissional em Portugal e sempre pensei em ir para outro país viver. Nem dava na TV, nem sabia nada sobre seleções. Agora é diferente. Tenho sorte, mas isso não me faz esquecer o caminho que já percorremos. É fácil chegar aqui e dizer que isto é muito bom, mas elas estão há muito tempo neste caminho. Não podemos e nem gosto de comparar. Mas não posso fechar os olhos; tenho a sorte de ter estas condições. Vivo isto e estou aqui, mas estou ansiosa para que o meu Portugal avance. O nosso brilho português e talento nunca vão conseguir replicar. Nós fazemos muito com pouco.
Estou feliz, comecei a jogar e, independentemente de tudo, há muito mundo para percorrer e sempre haverá lugar para nós em qualquer lugar. Agora estou no maior clube da Suécia; não esperava mais do que estou a viver.
"Sempre tive o copo para encher, só faltava a água"
- Sentiu necessidade de adaptar o seu futebol a essa nova realidade?
- Sempre achei que, com este estímulo, chegaria naturalmente a este tipo de jogo: intensidade, ligação de setores, chegar à área, correr... A nível atlético, sempre tive muito cuidado e preocupação. Quando comecei a fazer jogos internacionais e a estar no meio de outra realidade, sempre trabalhei para moldar-me bem. Sentia que precisava de mais estímulos para ajudar-me a dar o salto. Sempre tive o copo para encher, só faltava a água.
Quando surgiu esta oportunidade, sempre soube que era uma questão de tempo até chegar (ao nível exigido). Sei que nunca vou ter a altura delas, mas a nível atlético e de intensidade, não senti que fosse um problema. (...) Todas conseguiram reconhecer a minha parte mais técnica, mais portuguesa, e, a nível físico, senti que estava no sítio certo. Ganhei coisas muito boas no meu jogo, aquelas matreirices, pois preciso dessas ferramentas, como dar um empurrão antes de ir para o espaço, quando a árbitra não vê, claro (risos). Fui obrigada a ganhar isso para estar neste contexto. Também tive muita sorte, porque a minha equipa joga muito futebol no pé. A vida é minha amiga.
- Mas também é preciso ser amigo da vida…
- Olho para o meu percurso e vejo que tudo o que fiz foi sempre muito irregular... Mas tenho orgulho de que fui uma pessoa sempre muito boa, e isso fica nas pessoas por quem passo. Mas não há nada estonteante. (...) Sempre me preocupei com o que comia, com o investimento que fiz para me construir até hoje... Olho para trás e agradeço por não ter estado em alguns sítios tão cedo, porque ia mostrar uma versão de mim que não estaria tão preparada. Hoje, após tantas voltas e experiências incertas, isto deu-me muito trabalho: psicóloga, nutrição, suplementação... Uma coisa é ser jogadora de futebol; outra é sermos atletas de alto rendimento, e acho que durmo descansada com isso.
- Voltando ao Malmö. Apesar de ser algo esperado, o Malmö confirmou a subida à primeira divisão. Houve festa?
- Para as pessoas do clube e à volta, é uma alegria. Veio o presidente falar ao balneário e até chorou. Eles vivem a equipa, é mesmo bonito de se ver. Para eles, é uma felicidade e não querem saber de mais nada; foram cinco anos sempre a subir desde que voltaram. Para nós, para quem está dentro, fizemos festa, tivemos folga e voltamos sem que nada acontecesse. Temos de ganhar a liga. Temos três jogos para ganhar e aí sim vai ser uma festarola.
- Como é que as pessoas olham para o futebol?
- É muito engraçado. Estamos na segunda divisão e, por sermos o Malmö, somos muito acarinhadas. Eles vivem muito o clube e o futebol. O futebol feminino está mais avançado; dá para sentir mais do que em Portugal.
"Amo o Valadares, foi onde descobri onde sou especial"
- O que sente que esta época lhe deu? No futebol e na vida...
- Desportivamente, não tenho palavras para tudo o que ganhei. Sinto que o Valadares deu-me uma base de conforto. Mostrou-me onde sou especial, deu-me tempo e espaço, e muitos abraços para eu descobrir e ter essa base. Vir para aqui, culturalmente, é um grande choque. Vivo sozinha; é só sueco à minha volta, o país é frio, a língua… estar sozinha e isolada… sueco, sueco, sueco… É uma experiência que tenho a certeza de que seria muito difícil de viver para 90% das pessoas. E se não fosse a base do Valadares... Amo o Valadares!
Estou muito cansada após dois anos seguidos a competir. Mas o meu maior foco é, até dezembro, estar preparada para competir 90 minutos. Após estes 17 meses de tanta competição, acho que nunca desfrutei tanto de jogar sem peso nenhum.
- Encontrou-se no Valadares Gaia?
- Foi, foi. O meu percurso foi sempre de um lado para o outro. Nunca houve uma aposta clara em mim, e lá deram-me muitas coisas e a mais importante: espaço. Depois tenho de falar da minha psicóloga, toda a gente precisa. Vir para aqui e passar por tudo a nível emocional… Eu não aguentava aqui nem seis meses sem essa base.
Mas saio daqui e digam-me o que não consigo fazer? Diz-me o que queres e dá-me tempo que eu alinho no que precisar. Tenho o coração super aberto. 'Olha, gosto disto e precisamos do teu futebol para isto, e vai ser ainda melhor se puderes dar isto'. Perfeito: dá-me tempo. (...) Se quiser jogar ao nível que quero, era impensável ganhar essas coisas em Portugal pela competitividade que ainda não temos.
- A partir de agora, sente-se pronta para qualquer desafio?
- Qualquer desafio, sim, mas também há um mínimo que pretendo sempre, porque sei o quão difícil foi chegar até aqui.
- Depois de gozar um período de férias após dois anos sempre a competir, quais os objetivos a médio prazo?
- Neste momento, como não tenho energia para pensar muito mais à frente, o mais longe que consigo ir é ganhar um jogo por Portugal (sub-23). O meu foco é até dezembro, para estar no máximo potencial com esta energia que ainda me resta. Depois, é um mês para descansar e, em janeiro, muita coisa pode acontecer. Mas o meu objetivo é continuar a competir ao mais alto nível.
- Há a possibilidade de continuar no Malmö?
- Há essa possibilidade, sim, mas agora só penso nos jogos que tenho até ao final da época.
"Seleção? Vai chegar o momento em que vão precisar do meu futebol"
- A Seleção A está entre os objetivos da Mafalda?
- Claro, mas isso depende de imensos fatores. Gosto de pensar que vai chegar o momento em que vão precisar do meu futebol e, quando chegar, que é quando também estarei preparada para estar nesse registo. Acho que é uma questão de tempo. Todos os palcos com essa exigência grande, como Champions, Seleção, Euro ou Mundiais, é para esse nível de jogo que eu trabalho o meu futebol para ser necessário. Estou a moldar-me para estar nesses grandes contextos.
- Entramos na parte final da nossa entrevista e viajamos até ao início. Como é que o futebol apareceu na sua vida e como se deixou encantar?
- Ninguém na minha família joga, nem sei quem meteu esta ideia na minha cabeça. Mas lembro-me de começar na escola, onde me dava muito com rapazes e eles jogavam à bola. Depois comecei no Quintajense e, na altura, fui aos primeiros treinos. Era a única menina e quis sair porque os meninos eram uns estúpidos, não me escolhiam. Não gostei nada. Saí e, passado um ano, vi que havia uma menina e pedi para voltar. Aí já foi mais acolhedor. Nessa altura nem sabia que havia equipas femininas.
- Quando percebe que podia fazer vida do futebol?
- Não tinha noção de contratos, nem de jogadoras, mas sempre quis jogar à bola. Gosto muito de artes, mas não me lembro de querer ter uma profissão. Como não sabia que o feminino dava em Portugal, estava para ir para os Estados Unidos, estudar e jogar…
- Ao início o futebol não fez muito sentido e sentiu-se triste, mas acabou tudo por dar certo. Hoje, que conselho é que a Mafalda daria à pequena Mafalda?
- Explicava-lhe que não era sobre o futebol, mas sobre as pessoas à volta dela não saberem mais. Como foi o primeiro choque, meti na cabeça aquilo. Mas, sinceramente, só tenho vontade de a abraçar e dar-lhe o toque de que no fim ia tudo fazer sentido. (...) Eu olho e não mudava nada do que aconteceu até hoje no meu caminho.
- Por fim: que impacto gostaria de deixar no futebol?
- Sempre fui uma excelente pessoa e uma excelente profissional. Sempre tive um abraço muito especial para todos os que precisaram no momento em que me encontraram. Espero que me lembrem como alguém que contribuiu positivamente para deixar cada lugar ou projeto melhor do que encontrei e que, no fim de tudo, inspirei alguém a querer escrever um caminho ainda mais bonito do que o meu.