Análise: O sintético distorce o jogo? O caso do Brasil
"A altura da relva não deverá exceder 30 mm e toda a superfície de jogo deve ser cortada na mesma altura. O corte da relva deve ser recto, feito em linhas paralelas a totalidade da largura do campo e perpendicular às linhas laterais. Não é permitida nenhuma variação na tonalidade da relva, com o objetivo de criar padrões circulares ou em diagonal".
O extenso conjunto de regras da liga de futebol mais competitiva e rica do mundo difere bastante dos padrões do lado de lá do Atlântico, dos campos brasileiros. Entre outros motivos – e é bom que se diga que com total anuência da FIFA – porque os campos brasileiros não precisam seguir muitos padrões, e podem até ser de relva sintética. No Reino Unido, o chamado relvado híbrido, com normalmente menos de 10% de relva artificial, também é permitido. É o caso de Anfield, do Liverpool.
Igualdade na teoria
Por mais que o debate sobre as lesões serem mais frequentes ou não em campos com relva artificial esteja em aberto, outro tema merece ser discutido. No Brasil, para nos focarmos apenas na Série A, o sintético está presente nos estádios de Athletico-PR, Botafogo e Palmeiras, enquanto o Atlético-MG deve fazer a mudança em 2025. A igualdade de condições para os conjuntos atuarem, no caso da Série A, está mantida?
"Pode ser coincidência mas, na minha opinião, sem querer atingir de maneira alguma as equipas que têm esse tipo de relvado, até porque trabalhei no Athletico-PR e, de uma maneira ou outra fui beneficiado naquele período, penso ser muito desigual jogar num relvado natural e depois em noutro como esse (sintético)".
A frase do treinador Dorival Junior, atualmente na Seleção Brasileira, foi pronunciada no Allianz Parque, em São Paulo, após o o então clube que treinador, o São Paulo, ter sido goleado pelo rival Palmeiras (0-5) na segunda volta do Brasileirão de 2023. O título acabaria sendo conquistado pelo conjunto alviverde, dirigido por Abel Ferreira.
"No relvado sintético, a bola ressalta e corre de forma diferente, o que sempre requer uma certa adaptação dos jogadores", afirmou o treinador Armando Evangelista ao Flashscore Podcast. Para o técnico que esteve em 2023 no Brasil, a treinar o Goiás, "é melhor ter uma relva sintética em boas condições do que um relvado natural mau", mas, mesmo assim, a preferência dele pelo primeiro tipo é nítida.
Também na temporada passada, o então guarda-redes do América-MG, Matheus Cavichioli, deixou clara a preferência dele, em entrevista ao jornal O Tempo.
"Prefiro o natural, porque nós não treinamos com relva artificial, não temos um campo assim, como outros clubes também não. Será que isso não acaba por dar uma certa vantagem para quem tem a possibilidade de trabalhar e treinar com esses relvados?", questionou o jogador, que no início deste ano se transferiu para o Água Santa.
"Vemos os donos desses estádios com uma determinada vantagem frente os adversários. Eles sabem, porque às vezes a bola ressalta e corre, sobe... Por ser um piso onde todos têm acesso, é melhor o natural. Isso padroniza e torna o jogo mais equilibrado", disse Cavichioli, expressando uma opinião que reflete a maioria das declarações dos jogadores dos principais clubes do Brasil.
Risco maior de lesão?
A Fenapaf (Federação Nacional dos Atletas Profissionais de Futebol) anunciou neste início do mês de março que vai discutir a proibição da relva sintética não para agora, mas para as próximas temporadas. Treinadores de destaque do futebol nacional também se pronunciaram nos últimos meses contra a carpete. Casos, por exemplo, de Fernando Diniz e Rogério Ceni.
"O relvado sintético exige uma preparação diferente", disse o atual treinador do Bahia, mas quando ainda estava no Tricolor Paulista. O técnico do Fluminense, também no Brasileirão de 2023, poupou os principais jogadores quando visitou o Palmeiras. O Tricolor Carioca estava na reta final da Libertadores, torneio que acabou por conquistar.
"Oferece mais risco (o relvado sintético). Não gosto do advento do campo com relva sintética. Não é o melhor para os jogadores, e eu sou a favor do que é melhor para os jogadores. Não favorece o jogo, muda o jogo, não é o mesmo. Existe uma força no mundo para que os relvados sintéticos sejam abolidos de alguns campeonatos, muitos na Europa não tem esse tipo de relvado, e eu sou a favor de que tenhamos um campeonato jogado somente com relva natural", afirmou Diniz, após o Fluminense vencer o Santos por 3-0, em novembro. Na jornada seguinte, a equipa carioca visitaria exatamente a relva sintética do Allianz Parque.
Especialistas em medicina e educação física que estudam o tema, tanto no Brasil quanto no exterior, não têm uma tese fechada sobre se a relva sintética é mais ou menos propensa a provocar contusões nos atletas. Mas uma das premissas levantadas em estudos acadêmicos é se uma coisa não está ligada a outra. Ou seja, jogadores que atuam com mais frequência na relva artificial, e também treinam nesse tipo de piso, por serem mais acostumados a ela, acabam se machucando menos.
A favor dos carpetes – e o relvado do Engenhão, por exemplo, sempre foi muito elogiado inclusive por técnicos e jogadores que preferem a relva natural – está o preço da manutenção e da facilidade dos cuidados com o estádio. Estimativas divulgadas pelo Athletico-PR, o primeiro conjunto do país a abdicar da grama natural, em 2016, indicavam que, enquanto a manutenção do campo artificial gira ao redor dos 200 mil reais (36 mil euros), o gasto com energia apenas para manter aquecida a relva natural por meio de refletores gigantes adicionava um milhão de reais (183 mil euros) à conta mensal do clube.
Mudanças para o Mundial
Enquanto isso, no exterior, as informações divulgadas por Fernando Diniz vão ganhando contornos de realidade. Nos Países Baixoa, o sintético está proibido a partir da temporada 2025/26. Nos Estados Unidos, o MetLife Stadium, em Nova Jérsia, está com relva artificial que existe desde 2010 com os dias contados.
Usado também pela NFL – onde o debate sobre natural x sintético está mais quente do que nunca –, o campo será um dos palcos da Mundial-2026, que vai ocorrer também no Canadá e no México. Outros sete campos do próxima Mundial terão que trocar de piso, mesmo que seja algo temporário, só para o mês do Mundial. Motivo? A FIFA quer uniformizar as superfícies para que todas as 48 seleções classificadas tenham igualdade de condições.
A entidade máxima do futebol mundial contratou especialistas no assunto, como John Sorochan, professor de Ciência e Gestão de Gramas no Departamento de Ciências Vegetais da Universidade do Tennessee, para acompanhar a instalação e a manutenção dos gramados.
A questão agora é saber, por exemplo, se a relva vai crescer de forma satisfatória em todos os locais. A situação tende a ser mais complexa em AT&T Stadium (Dallas), NRG Stadium (Houston), Mercedes-Benz Stadium (Atlanta), BC Place (Vancouver) e SoFi Stadium (Los Angeles). Todos são estádios indoor, onde a luz do sol nem sempre é abundante.
Membros do comité da FIFA já declararam à imprensa americana que existe o risco de algo falhar. A ver se a bola vai rolar macia como nos campos ingleses.