Como Ronaldo foi da salvação à insatisfação no Cruzeiro e decidiu vender o clube
Uma história hollywoodesca que chega ao seu ato derradeiro com requintes de remorso e talvez ingratidão. Quando surgiu o anúncio da compra da SAD do Cruzeiro no fim de 2021, Ronaldo retornava ao clube que o fez despontar no mundo do futebol como o salvador da pátria.
O clube mineiro estava à beira da falência, afundado em dívidas e não conseguia sair da segunda divisão brasileira. A degradação e do património do clube era tanta que funcionários chegaram a receber cabazes dos adeptos e jogadores mais abastados.
Quem tinha mais, ajudava no pagamento de contas básicas. Para se ter ideia, Luiz Felipe Scolari, que passou no Cruzeiro nessa altura, teve que pagar, do próprio bolso, passagens aéreas de atletas.
O ex-jogador Marcelo Moreno, um dos ídolos da Raposa, emprestou mais de três milhões de euros ao Cruzeiro em 2020, valor que entrou no processo de recuperação judicial quando Ronaldo assumiu o clube.
O Fenónemo viveu um momento dourado com a equipe celeste. Afinal de contas, logo no seu primeiro ano de gestão e com uma equipa barato, conseguiu o tão desejado acesso à elite do futebol brasileiro, recolocando o Cruzeiro na Série A do Brasileirão após três anos de martírio.
No planeamento, tudo parecia ótimo. E os processos administrativos proporcionaram ao clube uma profunda reestruturação, inclusive física, com a reforma da Toca da Raposa 2, o centro de treinos do clube mineiro.
No mais recente balanço, foi possível ainda constatar que a dívida do Cruzeiro diminuiu para quase 137 milhões de euros ao fim do ano passado.
Mas faltou futebol...
Mas 2023 e o início de 2024 de Ronaldo e os seus gestores foram difíceis quando o assunto foi futebol. Justamente o mundo que o Fenómeno mais conhecia.
No ano passado, o primeiro sinal de rutura veio na derrota do Cruzeiro por 2-0 no clássico com o América-MG, no primeiro duelo da meia-final do Campeonato Mineiro. Ronaldo Fenómeno foi alvo de protestos dos adeptos que deixaram o ex-jogador indignado.
“Hoje foi um dia muito triste pra mim. Não só pelo resultado em campo, mas pelas reações de parte dos adeptos e imprensa. Nunca é demais lembrar a situação em que encontrei o Cruzeiro e o processo doloroso que estamos a passar", escreveu Ronaldo nas suas redes sociais.
No primeiro Brasileirão de volta à elite, o Cruzeiro sofreu bastante, especialmente em casa. Revoltados, os adeptos aumentaram o tom das críticas e a Máfia Azul, principal claque do clube, envolveu-se numa briga generalizada na Vila Capanema, invadindo o campo de jogo após um golo do Coritiba em derrota por 0-1 no Brasileirão.
O Cruzeiro conseguiu escapar da descida nas últimas jornadas e ainda se qualificou para a disputa da Taça Sul-Americana deste ano. Na mudança para 2024, Ronaldo prometeu investimentos mais robustos no futebol, além de parceiros ativos para colocar a Raposa no patamar que os adeptos esperavam.
Mas a equipa fracassou na final do Campeonato Mineiro, perdendo novamente o título para o seu maior rival, o Atlético-MG, e muitos dos reforços trazidos pelo departamento de futebol nem sequer foram utilizados. A revolta aumentou, com parte dos adeptos a queimarem uma bandeira de Ronaldo em sinal de protesto.
O clima ficou pesado e a debandada da SAD do Cruzeiro começou. Rafael Cabral, o guarda-redes que veio para substituir o ídolo Fábio - outra decisão polémica da gestão Ronaldo, que preferiu a saída do atleta a honrar com a renovação integral do seu contrato por mais uma temporada - deixou o clube mineiro e foi emprestado ao Grémio, após falhas e críticas dos adeptos.
O diretor executivo Pedro Martins, altamente criticado pelos cruzeirenses, confirmou a sua ida para o Vasco da Gama e deixou o cargo de gestor do futebol da Raposa. Paulo Autuori, o diretor técnico, e Paulo André, interino no departamento de futebol, também confirmaram as suas saídas.
De lá para cá, os movimentos foram rápidos, com a notícia de que Ronaldo, insatisfeito, negociava, portanto, a venda dos seus 90% de participação na SAD do Cruzeiro para o empresário Pedro Lourenço, um de seus principais apoiadores desde a chegada ao clube.
Troca de treinadores
Desde o início da era Ronaldo no Cruzeiro, o clube teve sete treinadores. A última demissão foi a do argentino Nicolás Larcamón, campeão da Liga dos Campeões da CONCACAF com o Club Léon, do México, e que permaneceu à frente do Cruzeiro em 14 jogos, com sete vitórias, quatro empates e três derrotas, um aproveitamento de 59,5%.
Para o seu lugar, o Cruzeiro contratou Fernando Seabra, que estava no clube e, ao lado do veterano Paulo Autuori, salvou a equipa da descida na temporada passada. O problema é que Seabra não continuou no clube depois do fim de 2023, quando aceitou uma proposta para a formação do Red Bull Bragantino.
Foi como se o Cruzeiro tivesse entendido que ele não era o homem certo para receber uma oportunidade. Meses depois, regressou como a solução. Uma decisão confusa do departamento de futebol.
Politica do bom e barato
Com pouco dinheiro em caixa e dando prioridade ao pagamento de dívidas, o Cruzeiro precisou de ser criativo no mercado para encontrar bons valores a preço baixo. A maioria das contratações da equipa desde a chegada de Ronaldo baseou-se em atletas emprestados ou jogadores livres.
Em 2023, o investimento da equipa em contratações foi de nove milhões de euros. Para se ter ideia, o Flamengo movimentou em contratações na temporada passada 40,5 milhões de euros.
Fazer futebol no Brasil, ainda mais na elite, com pouco dinheiro, é complicadíssimo. E podemos dizer que o Cruzeiro ainda conseguiu sair-se bem, conquistando uma qualificação para uma competição continental e garantido a permanência no primeiro ano de regressa ao Brasileirão, algo que era de extrema importância para o reequilíbrio da instituição.
O balanço final
No triunfo do Cruzeiro sobre o Vitória por 3-1, no Mineirão, uma faixa com a simples frase "Tchau, Ronaldo" destacou-se no estádio belorizontino. Os benefícios que Ronaldo trouxe para a Raposa mineira durante sua administração são inegáveis, recolocando a equipa no lugar que lhe era de direito, além dos avanços administrativos.
Por isso, a faixa desse domingo trazia consigo um aspeto de grande ingratidão, dando conta da relação desgastada do ex-jogador com setores dos adeptos e também da imprensa mineira. Ao contrário do que aconteceu com o Valladolid, Ronaldo encontrou no Cruzeiro uma experiência gigantesca, pois assumiu uma equipa seis vezes campeã da Taça do Brasil, tetracampeã brasileiro e bicampeã da Libertadores.
Por isso, terá o seu nome marcado na história do clube duas vezes, como o jovem prodígio do anos 1990 e como o responsável pelo fim do martírio da Série B. Mas também se despede como um vilão para muitos adeptos que esperavam dele mais ousadia nas contratações e que trouxesse de volta o "Super Cruzeiro" que muitos estavam acostumados a ver, lutando por títulos e com grandes craques no seu plantel.
Nesta balança desequilibrada, faltou a Ronaldo uma proximidade maior com os adeptos na exposição dos problemas que afetavam o clube, especialmente os financeiros. E claro, faltou ao adepto racionalidade para entender que o momento do Cruzeiro era outro.
A história chega ao fim com uma simbólica passagem do bastão para Pedro Lourenço, empresário que esteve sempre envolvido nos bastidores do Cruzeiro desde a era Zezé Perrella. Ele, que outrora já teve o sonho de ser presidente do Cruzeiro, assume o clube como dono da SAD.
Com Pedro, a esperança do adepto renasce, assim como a projeção de grandes contratações. Mas será necessário conter a euforia para que a razão também aja e não interrompa os caminhos administrativos e organizacionais da era Ronaldo. É o dilema do novo Cruzeiro.