Entrevista Flashscore a Inês Maia: "Estou a trabalhar na Turquia para representar Portugal"
Inês olhava para o irmão cinco anos mais velho e deixava-se contagiar pelo bichinho do futebol. Os pais acederam ao desejo e os primeiros passos foram dados ao lado dos rapazes. Nunca se sentiu peixe fora de água. Aos 13 anos procurou oportunidades em projetos exclusivamente femininos até viver o drama da rotura de ligamentos. Duas vezes.
A força de vontade, uma estrutura familiar "fantástica" e uma equipa médica e de fisioterapia de "excelência" permitiram que recuperasse a 100%. O sonho estava (novamente) bem presente. Aos 16 anos, Inês integrou a primeira equipa sénior no Valadares Gaia e conquistou logo o seu primeiro título, assistindo Guita para o golo do triunfo sobre o Futebol Benfica (0-1), na Supertaça. Seguiu viagem.
Atingiu o estatuto de profissional em Braga, onde conciliou o futebol com o curso de contabilidade, e aos 20 anos já tinha conquistado tudo o que havia para conquistar em Portugal e disputado Liga dos Campeões. Antes da mudança para Istambul, para fora da sua zona de conforto, ainda venceu a Taça de Portugal ao serviço do Famalicão e passou por um momento muito duro do ponto de vista pessoal.
Caiu, mas levantou-se com a força de sempre. A força de uma verdadeira guerreira!
"A minha mãe ainda tentou uma aulinha de ballet, mas não teve sucesso"
- A Inês faz parte de uma geração que teve outras oportunidades ao nível da formação, ainda assim começou a jogar com rapazes. Como foi essa experiência?
- Era normal naquela idade. Havia o problema do balneário, mas era sempre encontrada uma solução. Ou equipava primeiro ou até me equipava no balneário dos árbitros, porque eles eram menos e mais rápidos. No fundo, era mais uma e nunca houve aquele medo de meter o pé.
- E os seus pais?
- A mudança dos tempos permitiu-me ter muita sorte em ter uma família que sempre me apoiou nesse aspeto. Numa altura em que não era gratuito, os meus pais tinham de pagar para eu jogar e sempre tive a sorte deles fazerem esse esforço por mim e pelo meu irmão. A minha mãe ainda tentou uma aulinha de ballet, mas não teve sucesso (risos).
- Quando percebe que o futebol podia ser mais do que um simples hobby?
- O meu primeiro salário surge no Valadares, em que servia para pagar o custo das deslocações que a minha mãe fazia todos os dias. Ou seja, o custo do combustível era suportado por esse salário. Depois quando chego ao SC Braga, um clube de outra dimensão, com todo o respeito para os outros, aí sim, percebi que era jogadora de futebol e tinha de trabalhar como profissional. Saí de casa com 18 anos para ir para Braga e entrei na Universidade do Minho em contabilidade, em regime pós-laboral. Treinava de manhã e à tarde e à noite ia para a Universidade.
- Era fácil conciliar?
- Não foi fácil, mas é possível. Quando pensamos na vida a longo prazo, a carreira de futebolista, apesar de incrível, é curta e intensa, por isso temos de ter um plano B na nossa vida para assegurar o futuro.
- Como avalia a passagem no SC Braga, em que tem a oportunidade de conquistar os grandes títulos nacionais?
- Sempre tentei aprender com as jogadoras mais experientes e no SC Braga encontrei jogadoras que eram referências na Seleção Nacional e de poutros países. Observava o que faziam nos treinos e nos jogos, assim como a alimentação, etc. Sendo jovem numa equipa sénior, nem sempre é fácil conseguirmos as nossas oportunidades, mas temos de mostrar sempre ao treinador que estamos disponíveis para jogar qualquer jogo.
- O SC Braga foi um dos clubes que ajudou ao crescimento recente do futebol português. Como fo acompanhar essa evolução?
- A entrada de clubes do top 4 portugueses traz visibilidade e investimento. Apanhei esse crescimento e creio que a entrada desses clubes criou um fosso inicial para os restantes, pois houve forte investimento e os clubes mais pequenos não conseguiram acompanhar isso. Agora já vemos esses clubes a investirem mais para se aproximarem, mas a verdade é que trouxe muitas coisas boas, tais como a profissionalização da jogadora portuguesa, que nos permitiu lutar por resultados diferentes na Europa e Seleção Nacional.
"Pelo que passei, hoje sou melhor pessoa e jogadora"
- Ao longo desta caminhada, quais foram as principais dificuldades que encontrou?
- Sinto que a mentalidade de algumas pessoas em Portugal ainda não é a correta em relação ao futebol feminino. Há dias li uma publicação da Jéssica (Silva) em que dizia que nós para recebermos alguma coisa temos de a conquistar primeiro. Ainda assim, creio que o futebol feminino tem evoluído bastante por mérito próprio, por pessoas, não falo só em mulheres, porque há muitos homens que acreditam e procuram lutar pelo direito das mulheres no desporto. Mas algumas mentalidades ainda não estao preparadas.
- O que se pode fazer para mudar isso?
- Continuarmos a trabalhar, a lutar pelos objetivos e mostrar que somos gratas por quem nos apoia.
- A Inês sofreu uma grave lesão no início da carreira, mas isso não a impediu de chegar onde chegou. Mostra resiliência?
- Na verdade, tive duas roturas de ligamentos quase seguidas. A primeira com 14 anos e a outra com 15. Hoje sou uma jogadora, mas, acima de tudo, uma pessoa completamente diferente, fruto do que tive de trabalhar esse ano, ano e meio, em que tive de passar por momentos que pessoas da minha idade não tiveram de passar. Essa resiliência, associada ao pensamento de que tens de fazer por ti para conseguir subir mais um degrau, tudo isso molda-te enquanto pessoa. Ensina-te que, se não acreditares que é possível dar a volta por cima, no futebol ou na vida, não vais conseguir ser melhor.
- Quem esteve ao seu lado nessa fase para a fazer continuar a acreditar que era possível?
- Acima de tudo, a minha família foi sempre um suporte muito importante. Depois tive a sorte de ser acompanhada por uma médica espetacular, a Dra. Marta Massada, que foi incrível na forma como me transmitiu a ideia de que nada terminava ali, e que era apenas o recomeço de um novo ciclo. Tive também um acompanhamento de excelência ao nível de fisioterapia, que os meus pais me permitiram continuar depois do seguro, e isso permitiu-re recuperar a 100% e atingir um nível alto.
"Temos condições de excelência e sinto-me valorizada"
- Como surge a possibilidade de ir para a Turquia? Era algo que ambicionava?
- Saio do Famalicão com uma Taça de Portugal conquistada contra o SC Braga e surge a oportunidade de olharmos para outros mercados. O meu agente Ricardo (Derriça Pinto) falou-me da possibilidade Besiktas e, em Portugal, quando falamos em campeonato turco o nome Besiktas é logo aquele vem à cabeça. Entre outros projetos, pareceu-me o mais adequado. (...) Vim para o Besiktas numa altura muito complicada a nível pessoal, pois tinha perdido o meu pai há seis meses. Tive algum cuidado com a minha mãe, mas ela disse-me sempre para ir atrás dos meus sonhos e que nunca ia prender-me pelo que tinha passado, que ia estar sempre lá para me apoiar.
- Que realidade encontra em Istambul?
- Nos primerios três dias tive o Ricardo comigo, para tratar do contrato e do apartamento. O que encontro é um campeonato super competitivo, com condições de excelência em termos de apoio à jogadora de futebol. Sinto-me valorizada enquanto mulher e jogadora, pois dão-me todas as condições para prosseguir aquilo que quero que é ser jogadora de futebol profissional. (...) Temos um tradutor à nossa disposição, temos um team manager para ajudar em qualquer problema... É avassalador! Por exemplo, fomos a Ancara jogar contra o campeão Fomget, que tem três campos de treino e um estádio só para a equipa feminino. É outra dimensão.
- E a nível de futebol? Muito diferente?
- É diferente. A jogadora tuca tem capacidade técnica muito boa, mas a jogadora portuguesa é mais forte em termos táticos. Mas tem sido uma adaptação muito boa e creio que me estou a valorizar aqui, até tendo em conta o tempo de jogo que tenho vindo a somar na equipa. Estou a melhorar as minhas competências técnicas e táticas.
- Os adeptos turcos são reconhecidos por serem bastante fervorosos. Também apoiam o feminino?
- São fantásticos a todos os níveis. Somos muito acarinhadas na rua. Jogámos contra o Fenerbahçe a uma segunda-feira e estavam 12 mil pessoas a ver o jogo. Temos sempre muita gente a apoiar-nos e dentro do clube não há distinção. Falam constantemente na equipa feminina. Não é só masculino, é um clube por inteiro.
- Essa "pressão" e exigência mudou-te enquanto jogadora?
- Não creio que sinta pressão. Acho que simplesmente me preparou para jogar em ambiestes diferentes. Com um ou 10 mil adeptos, tento dar sempre o meu melhor.
- Sai de Portugal, mas acredito que sempre com olhar no nosso país e na esperança de ouvir o seu nome numa convocatória da Seleção. É assim?
- Não escondo que é um objetivo que quero muito. É um sonho muito presente e acredito que será sempre resultado do meu trabalho diário, por isso é nisso que me foco todos os dias quando vou treinar, vou ao ginásio ou na forma como me alimento e descanto. E quando tenho bons resultados dentro de campo, sinto que a Seleção fica mais perto. Estou a trabalhar na Turquia para representar Portugal.
- Uma Seleção que também tem evoluído bastante nos últimos anos. Qual a sua análise?
- É o resultado do investimento e trabalho dos clubes. Fico muito feliz e orgulhosa, primeiro como jogadora e depois como portuguesa, que a seleção alcance bons resultados e seja cada vez mais respeitada na Europa e no Mundo.
"A Turquia permitiu conhecer-me enquanto pessoa"
- Voltando a Istambul. O que é que uma cidade tão rica do ponto de vista cultural já lhe ofereceu?
- Só Istambul tem 14 milhões de habitantes, só por aí é incrível. Depois, tal como costumo dizer, também nos construimos enquanto pessoas no sítio onde vivemos. E ter a oportunidade de viver numa cidade tão rica culturalmente torna-me uma pessoa também muito mais rica. Já aprendi coisas incríveis sobre religião, política, economia... As pessoas dão-nos outra perspetiva de vida.
- ...
- É uma cidade repleta de monumentos magníficos e jardins. Posso contar uma pequena história que ilustra bem tudo isto. Nos meus dias livres tenho por hábito ir dar a minha corrida, até porque creio que é assim que consigo conhecer melhor a cidade, e uma vez dei por mim no meio de um parque enorme, no meio de milhares de edifícios e carros, num silêncio inexplicável, em que conseguia ouvir o som do vento e dos pássaros. Não há explicação. Sinto-me muito feliz por estar cá e ter esta oportunidade.
- Ainda não passou muito tempo desde a chegada, mas sente que a Inês de hoje é muito diferente da Inês que embarcou nesta aventura?
- Temos muito tempo livre. Quando saio do treino, as pessoas mais próximas estão no trabalho, portanto, fico com muito tempo para mim e esse tempo permite-me ter um autoconhecimento muito grande e fazer uma reconstrução devido a tudo aquilo que passei. A perda do meu pai foi um marco dificil na minha vida e fiz uma reconstrução de mim mesma, em que tive de arrumar as gavetas de alguns problemas que tive. No fundo, sinto que estar aqui na Turquia permitiu conhecer-me enquanto pessoa. E quando estás bem contigo mesma, permite-te realizar um trabalho melhor, ser melhor para os teus e viver a viva de forma diferente.
- O que espera que esta aventura no Besiktas lhe traga para o futuro?
- Espero fazer o melhor campeonato possível no Besiktas e continuar com a consistência exibicional que tenho tido. Tenho jogado os jogos praticamente todos e isso tem sido importante para sentir-me bem. Depois, tal como disse antes, tenho o objetivo de chegar a uma Seleção Nacional o mais rápido possível, é para isso que trabalho. Em termos futuros, claro que há campeonatos para os quais olho com especial atenção, mas tudo isso passa pelo trabalho que estou a fazer diariamente.
- A barreira de sair para o estrangeiro já foi quebrada...
- É um passo difícil, mas acredito que o crescimento está fora da nossa zona de conforto. A vinda para aqui deu-me uma maturidade diferente e abriu-me as portas para o mundo.
- Por fim, que conselho daria à Inês de seis anos?
- Sê feliz! Estuda, que também é importante (risos). E partilha a tua felicidade com os teus.