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Malásia com Telmo Castanheira: "Uma boa época aqui pode mudar a nossa vida"

Rodrigo Coimbra
Telmo Castanheira em destaque no Sabah FC
Telmo Castanheira em destaque no Sabah FCArquivo Pessoal
O Flash pelo Mundo é a nova rubrica mensal do Flashscore. Neste espaço, traremos entrevistas exclusivas com portugueses que elevam bem alto a bandeira nacional além-fronteiras. O nosso quarto convidado é Telmo Castanheira, médio do Sabah FC, da Malásia.

Acompanhe o Sabah FC no Flashscore

Telmo Castanheira passou vários anos na formação do FC Porto, mas teve de percorrer o caminho das pedras até chegar ao futebol profissional. Andou pela antiga segunda divisão B, passou pelo Campeonato de Portugal, onde anotou um golo digno de Puskás, em 2019 e ainda foi à equipa B do Vitória SC, com uma passagem pela Liga 2.

No entanto, em 2019 decidiu que estava na hora de dar um novo rumo à sua carreira e vida. Foi para o frio da Islândia e, mais recentemente, mudou-se para o calor da Malásia, onde recebeu o carinho e o respeito dos adeptos do Sabah FC. E é feliz, muito feliz, à sua maneira.

Telmo tem uma boa relação com os adeptos locais
Telmo tem uma boa relação com os adeptos locaisArquivo Pessoal

"Malásia surpreendeu-me muito"

- Como está a ser a experiência na Malásia?

- Está a ser uma aventura muito interessante e enriquecedora. Em termos pessoais, sinto que tenho crescido muito. Sair da zona de conforto é sempre positivo para nós e, nestes quase dois anos, tenho muitas coisas boas a dizer sobre a Malásia. Houve alguns momentos menos bons, claro, mas é um país que me surpreendeu muito pela positiva. A ilha onde estou tem muita qualidade de vida, com praias lindíssimas. É um lugar desenvolvido, com um povo muito apaixonado, que adora ir ao estádio e idolatra bastante os jogadores.

- Qual foi o principal impacto na chegada?

- O primeiro impacto foi o calor. Estamos a falar de 30 graus todos os dias, durante todo o ano. Eu vinha da Islândia, onde a melhor temperatura que apanhei foi 15 graus (risos). Foi um choque enorme. Acabava o treino e precisava de beber quase quatro litros de água devido à desidratação. No início, não geria tão bem o desgaste. Depois, aqui são poucos os campos que têm relva como a nossa; eles dizem que é por causa das chuvas tropicais, por isso é quase uma erva, mais grossa, que atrasa bastante o ritmo de jogo.

Em termos culturais, tive muita sorte, pois dizem que a minha ilha é o sítio com a mentalidade mais aberta para as diferenças culturais, e não senti grandes dificuldades. Há cidades na Malásia que são quase exclusivamente muçulmanas, e aí já se nota um pouco mais, especialmente do ponto de vista da alimentação. Mas também nada de especial.

- Não temos facilidade em acompanhar o campeonato da Malásia, por isso, pergunto-lhe como o apresenta ao público português?

- O campeonato está a crescer em termos de qualidade e conta com estrangeiros de qualidade. É importante dizer que é quase dividido em duas partes. Uma delas é o Johor, que é campeão há 10 anos, com um nível diferente, uma equipa que está ao nível das melhores da Ásia. Consegue quase formar duas equipas para ser campeão. Depois, há outro campeonato, que são as restantes equipas, onde se inclui a minha, a lutar pelo 2.º e 3.º lugar.

Telmo Castanheira feliz na Malásia
Telmo Castanheira feliz na MalásiaFlashscore

- E o jogador malaio? Tem qualidade?

- O jogador local é muito intenso, parte bastante o jogo, com muita correria. O jogo torna-se mais de transição e é difícil controlá-lo. Entra-se no ritmo dos jogadores locais: ganhas e perdes a bola. Aos 60 minutos, o jogo fica incrivelmente desorganizado. Nós, os jogadores estrangeiros, tentamos trazer algo diferente nesse sentido.

- Como são as condições de trabalho na Malásia? Não falo só no Sabah, até porque já se percebe que o Johor está num nível acima dos outros...

- O Johor é um clube ao nível de um FC Porto, no mínimo. É realmente algo incrível, não só para a Malásia. Há jogadores que vêm da primeira liga espanhola para lá e dizem: 'O que é isto?' Têm tudo o que é preciso, e o que não têm, arranjam. Depois, há 2-3 clubes que acompanham o crescimento do campeonato, melhorando as infraestruturas, ainda que estejam alguns passos atrás do que conhecemos em Portugal. Na parte inferior da tabela, há clubes que estão ainda mais atrasados, alguns com problemas financeiros. Depois da pandemia de Covid, alguns clubes ainda estão em fase de recuperação. 

- Os locais ligam muito ao futebol? Reconhecem-no na rua e abordam-no?

- Tivemos uma média de 9.000 espectadores em casa no ano passado. Contra o Johor, em casa, tivemos 15.000. Depois, tens o Johor, com quase 20.000 de média. Sinceramente, acho que é um clube que as pessoas deviam acompanhar, pois é impressionante. Sobre os locais, não são tímidos, nada mesmo. Abordam muito na rua e pedem sempre para tirar fotos. Às vezes, os miúdos tiram a sapatilha para que a assinem. São muito brincalhões e muito simpáticos. Este clube específico em que estou é conhecido pelos adeptos acompanharem bastante a equipa.

Telmo tira foto com adeptos do Sabah
Telmo tira foto com adeptos do SabahArquivo Pessoal

"Aprendi a viver o futebol de forma um pouco diferente"

- Recuemos até ao momento em que recebeu a proposta. Qual foi a sua reação?

- Quando recebi a proposta, não vou mentir: tinha a opção de ficar na Islândia, no clube onde estava, e também em outros, mas a parte financeira e a experiência pesaram muito. Queria abrir este mercado e ver até onde podia chegar. Uma boa época aqui pode mudar a nossa vida, e, nesta fase da carreira, pareceu-me um passo bem dado. Acho que foi a proposta certa na altura certa. Custou-me deixar a Europa e o clube; foi difícil dizer que não. Ofereceram-me quase um papel em branco para escolher a duração do contrato, mas senti que devia isso a mim mesmo. Felizmente, tem dado certo. A vida mostrou que foi o passo correto.

- Sentiu necessidade de adaptar o seu estilo de jogo ao futebol malaio?

- Sou bastante português a jogar; gosto de um ritmo mais pensado, de saber o que vou fazer quando tenho a bola, de saber onde o meu colega vai estar e o que vou fazer a seguir. Estou sempre a pensar o jogo e gosto de prever o que os meus colegas vão fazer para os conseguir encontrar. Quando cheguei aqui, o futebol era tão aleatório que eu queria pensar o jogo, mas não dava para prever, porque é um jogo de instinto. Como vou prever a ação de um colega se nem ele sabe o que vai fazer a seguir? Tive de me adaptar e crescer nesse sentido. Mas também tenho de ser justo e dizer que entrei numa equipa forte, com qualidade, e isso ajudou.

- E como é a vida na Malásia fora do futebol?

- A vida na Malásia é boa. A ilha onde estou é ótima e oferece uma grande qualidade de vida. Já tive a oportunidade de conhecer Kuala Lumpur, que é muito interessante. Quando jogamos fora, costumamos ficar vários dias fora, o que dá oportunidade para conhecer outras cidades. Não me posso queixar; tenho desfrutado mais da vida do que alguma vez desfrutei. Sempre fui muito focado no futebol, quase obcecado… Aprendi a viver o futebol de forma um pouco diferente, sempre com o máximo de foco e responsabilidade, mas também a tirar proveito do lugar onde estou e da experiência que vivo. Já conheci muito da Malásia, e também é fácil apanhar voos para o sudeste asiático: Indonésia, Vietname… Temos tido várias pausas e tem dado para explorar um pouco. Tem sido uma experiência fantástica a nível pessoal.

Os números de Telmo Castanheira
Os números de Telmo CastanheiraFlashscore

- O Telmo emigra pela primeira vez em 2019. Foi fácil tomar essa decisão?

- Primeiro tenho de dizer que em Portugal trabalha-se muito bem; temos treinadores fantásticos apaixonados pelo jogo, que potenciam muito o jogador. Mas para ser jogador de futebol profissional e fazer carreira, termos uma almofada em Portugal é muito difícil. São poucos os que conseguem chegar àqueles clubes que conseguem oferecer isso ao jogador. Não há assim tantas oportunidades para o jogador português. O jogador português em Portugal é barato. Por isso, prefiro ser estrangeiro noutro país. 

Se fosse hoje, teria saído mais cedo. Posso dizer isto porque tudo correu bem quando saí, tive sorte nesse sentido. Senti que valorizam muito características minhas que, em Portugal… Bem, se calhar há muitos jogadores com um perfil igual ao meu em Portugal e não valorizavam tanto, enquanto fora há menos como eu, e valorizam mais.

- Presumo então que não está arrependido dessa decisão.

- Não… Agora não vou mentir. Tenho uma mágoa de não ter jogado na Liga. Acho que tinha essa capacidade, mas não houve culpa de ninguém. Houve momentos importantes em que as coisas não aconteceram, e gostaria que tivessem acontecido. Não me arrependo de ter emigrado; tinha 25-26 anos, surgiram propostas para fora, e decidi não esperar mais pelo momento. Achei que devia procurar estabilidade para mim e para a minha família. Escolhi a Islândia também por essa questão da estabilidade. Sabia que seria um bom passo e abriria portas para um mundo inteiro para explorar.

Telmo recorda período feliz na Islândia
Telmo recorda período feliz na IslândiaArquivo Pessoal

"A Islândia mudou a minha vida"

- Que importância teve a Islândia para sua vida?

- Trataram-me maravilhosamente. No primeiro ano, o impacto foi grande; não são pessoas super acolhedoras. Costumo dizer que o futebol tem de falar nestes casos, e isso acontece quando te respeitam dentro de campo. No início, são muito desconfiados em relação ao nosso valor. Mas esta experiência mudou a minha vida. Saí da minha zona de conforto, deixei os meus amigos e família em busca de algo importante para mim. Passei por momentos difíceis sozinho e ganhei resistência. Estava por minha conta, e não havia espaço para choradinhos. Ganhei uma atitude de sobrevivência, fiquei mais forte mentalmente. Se estivesse mais triste num treino, ninguém vinha perguntar o que se passava. Isso mudou a minha mentalidade e tornou-me mais competitivo. Agora, é mais difícil que fatores externos me afetem.

- Na Islândia só existia mais um português para além do Telmo e agora é o único português na Malásia. Como se sente nesse papel?

- Não é fácil encontrar um país do futebol onde não haja um português. Quando cheguei à Malásia, não havia nenhum, depois veio o (Francisco) Geraldes, entretanto saiu… Tenho muito orgulho no nosso país. Ser português é um orgulho. As pessoas valorizam muito o facto de ser português, sobretudo pelo Ronaldo. Em qualquer lugar fora, quando digo que sou português, a reação é muito positiva. Às vezes, parece que somos mais valorizados no estrangeiro.

Eu tento representar o meu país da melhor forma possível e dou o meu melhor. Em termos de caráter, procuro ser o melhor possível para que o português seja confiável no mercado da Malásia. Espero que falem aqui do jogador português como alguém de confiança.

- Já se vê alguma bandeira portuguesa ou alguma camisola com o número 10?

- Sim, já se vê. Já há algumas t-shirts com o meu nome e bandeiras portuguesas. É algo que me toca. Quando isso acontece vem muita coisa à cabeça. Quando a família não está, ou quando estamos sozinhos, sentimo-nos mais acarinhados, e isso é bonito. Nunca pensei que tivesse essa importância.

Telmo Castanheira não jogou a jogar na Liga Portugal
Telmo Castanheira não jogou a jogar na Liga PortugalArquivo Pessoal

"Teria qualidade para jogar na Liga"

- Aos 32 anos e depois de tudo o que já viveu, de que forma olha para a sua carreira?

- Pergunta interessante; dava para estarmos aqui uma tarde inteira a falar sobre isto. Há muitas reflexões. Penso algumas vezes sobre isso, até porque cometi erros e tomei certas decisões em momentos específicos, e pergunto-me se foram as certas. Não vale a pena chorar, mas às vezes perco alguns minutos a refletir sobre certos passos que dei. 

Agora, com 32 anos, sinto orgulho. Cada passo foi dado com muito trabalho e dedicação. Houve total entrega da minha parte. Vivi muito obcecado, apaixonado e dedicado ao futebol. Dei tudo de mim, física e mentalmente. Acho que poderia ter tido uma carreira diferente em Portugal, mas não vou estar aqui a arranjar desculpas. Não fui suficiente em certos níveis, e quando estava, surgiu alguma lesão. Tive poucas, mas quando as tive, foi em momentos determinantes.

- Podia ter dado para mais aqui em Portugal?

- Acredito que teria qualidade para jogar na Liga e teria dado conta do recado, mas o futebol não chora por isso. Quando fui para o estrangeiro, provei um pouco isso. Podem dizer que a Islândia não é um país de topo, mas ficar lá quatro anos e jogar todos os jogos não é para todos. Vim para a Malásia e estou a conquistar o meu espaço diariamente. Estou de consciência tranquila, dei tudo de mim. Não guardo rancor. É verdade que encontrei algumas pessoas menos boas no meu caminho, mas fui eu que as aceitei. Em suma, só posso estar satisfeito com o que tenho, porque foi o que eu consegui. O futebol não me deu mais, mas deu-me muito a todos os níveis.

A forma recente do Sabah
A forma recente do SabahFlashscore

- Como encara o futuro?

- Tenho contrato até abril. Já tenho 32 anos e aprendi que falar de planos futuros é como dar um tiro no escuro. Abri a porta para a Ásia, a época tem sido positiva, e têm surgido algumas possibilidades aqui na região. Tenho contrato até abril, estou feliz aqui e focado em dar o meu melhor ao clube. A ideia é continuar na Ásia.

- Este tempo no estrangeiro mudou muito a sua perspectiva sobre o futebol português?

- Já é o meu sexto ano fora. Já tinha ideia de que se trabalha muito bem, que o jogador português tem qualidade, e quando saí percebi que tem mais do que eu pensava. O que eu gosto no jogador português é a inteligência de jogo. Acho que isso também vem do facto de os treinadores serem bons e trabalharem bem o jogador na formação. Há uma cultura de jogo em Portugal. Vamos a uma Liga 3 ou ao Campeonato de Portugal, e os jogadores têm muita cultura de jogo e tática. Acho que a liga portuguesa é uma montra.

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