Entrevista a Rui Vitória (parte 1): "Brasil? A oportunidade já surgiu e estou convencido que vai acontecer"
Rui Carlos Pinho da Vitória, natural de Alverca, foi jogador do Alverca, Fanhões, Vilafranquense, Seixal, Casa Pia e Alcostense. Começou a carreira de treinador no Vilafranquense, seguiram-se os juniores do Benfica, Fátima, Paços de Ferreira, Vitória SC, Benfica, Al Nassr, Spartak Moscovo e seleção do Egito. Três campeonatos nacionais, duas Taças de Portugal, duas Supertaças de Portugal, uma Taça da Liga, uma Liga saudita, uma Supertaça da Arábia Saudita e um título da agora denominada Liga 3.
- Rui Vitória, muito obrigado por estar com o Flashscore. Aos 53 anos, tem um currículo vastíssimo e, é justo dizê-lo, conquistado a pulso. Tem valido a pena fazer todos os sacrifícios inerentes a uma profissão assente numa grande paixão pelo que se faz?
- Muito obrigado pelo convite, é um prazer estar aqui a falar sobre futebol. Quando chegamos a esta altura, com o percurso que acabou de referir, é óbvio que me sinto muito feliz. Tem valido a pena esses sacrifícios feitos ao longo deste ano, quer como jogador, quer como treinador. Para mim não são sacrifícios, quem gosta daquilo que faz não o vê como profissão. Sempre fui ligado ao desporto desde miúdo, tirei o curso de Educação Física, fui jogador e treinador... só me via fazer isto. Quando chegamos a esta altura da nossa vida, temos estes anos acumulados a fazer o que gostamos, é um motivo de grande satisfação e orgulho. Quando aquilo que fazemos nos dá o resultado que imaginamos, tudo faz sentido e é isso que me dá mais prazer.
- Quando falei em sacrifícios, e quem anda neste meio sabe, a família fica muitas vezes para trás. É desse custo que estou a falar, mas suponho que para chegar longe numa carreira há todo esse suporte por trás.
- Sim, esse é um facto que não pode ser esquecido, nunca. Hoje chego mais facilmente a essa conclusão. Quem anda nesta vida, como jogador, mas fundamentalmente como treinador, sem uma estabilidade familiar boa vai ter muitas dificuldades em manter-se a nível elevado. Tenho tido muita sorte na família que tenho, que me apoia em tudo e me dá tranquilidade para exercer a profissão. Hoje em dia, chegamos a um momento como treinador, em que já não somos pagos para treinar muito, mas para pensar e tomar boas decisões. Isso só se consegue com uma cabeça tranquila, isso vem muito da nossa vida familiar. Quem tem uma vida em rebuliço, sem estabilidade, não vai ter a cabeça fresca para tomar boas decisões ao mais alto nível. Obviamente custa muito, tenho refletido um pouco sobre isto, quando vemos os aniversários e momentos altos da vida dos nossos filhos e não estamos presentes, isso tem um custo muito elevado. Mas a nossa paixão quase justifica estes sacrifícios. Se calhar é egoísmo, porque somos beneficiados nesta parte e a nossa família é prejudicada, mas a vida é como é e tentamos dar este equilíbrio para que toda a gente caminhe feliz nas nossas vidas e a minha família tem tido esse equilíbrio.
- Comecemos pelo seu último cargo, na seleção do Egito, uma das mais respeitadas de África e com mais ambições no continente. Esteve 19 meses no cargo, perdeu um jogo, e no final da participação na Taça das Nações Africanas (derrota com o Congo, no desempate por grandes penalidades, nos oitavos de final) recebe guia de marcha. Como lidou com isto, sendo que, no mesmo período, foi nomeado para melhor selecionador do Mundo. Não há aqui um contra-senso entre o que foi decidido e o trabalho feito?
- Eventualmente sim, apesar de não perder muito tempo com essas questões porque não está no meu controlo. Olhando para esse percurso, houve essa CAN que foi marcante para um país que vive com muitas emoções à flor da pele. Quando não estamos inseridos num contexto em que haja visão ou sentido crítico no que se está a fazer, claro que isto fica muito sujeito ao resultado de cada um dos jogos. Quando para lá fui, era previsto um trabalho de quatro anos, sabia que ia haver duas CAN no meio e pensaria que as pessoas teriam uma visão a longo prazo. Se fosse só pela questão da CAN, seria totalmente diferente. O trabalho que foi feito foi muito sustentado, conseguimos resultados muito positivos. Criámos expetativas muito elevadas, alimentamos muito as expetativas das pessoas e muita gente pensava que seria o momento do Egito, mas eu fui sempre alertando que não estavamos no caminho certo na forma como estávamos a trabalhar. Talvez tenha cometido um erro em não meter um travão, mas também pensei na emoção e entusiasmo, que eram tão grandes, que não havia forma de voltar atrás. Tinha consciência que não era uma tarefa nada fácil, apesar de estarmos num contexto positivo, mas fundamentalmente pelo que íamos encontrar e o contexto em que se joga uma CAN. Ao estudar esta competição, tive a perceção que isto poderia correr bem se entrássemos numa onda muito positiva, se isso não acontecesse íamos ter dificuldades porque havia uma série de variáveis que poderiam ter influência. No final, as pessoas acharam que a pressão era muita, porque a emoção é muito maior do que Portugal, o imediatismo funciona de forma muito vincada. Também tinha posto no meu contrato que poderíamos refletir no final da CAN, pus um meio termo a meio do ciclo de quatro anos. Gostava de ter continuado porque tive uma relação fantástica com os jogadores e estávamos a sentir que as coisas funcionavam, depois entendeu-se que era melhor não continuar. Depois desta CAN, também achei que não se devia forçar nada e não ia ser positivo imediatamente após o torneio. Foi uma decisão que tomaram e siga para a frente.
- O seu projeto a quatro anos previa uma reformulação da seleção, com sangue novo e mais competitividade. O argumento que a Federação do Egito avançou para a sua destitiuição foi que não atingiu os objetivos propostos, havendo aqui o contra-senso entre o que o mister se propôs a fazer e o que foi comunicado.
- Claro, isso é natural, tirar água do capote e tentar resolver coisas que vão surgindo no meio desta engrenagem. Eles tinham de justificar de qualquer maneira. A ideia passava por isto: primeiro apuramento para a CAN, quando chegamos estávamos em último lugar, conseguimos ficar em primeiro lugar e fizemos dois jogos de apuramento para o Mundial. Entendi que os jogadores que vieram comigo, mantivemos um núcleo sólido que se foi mantendo ao longo de um ano e meio, e entendi que estes jogadores tinham o direito de estar na CAN. Estamos a falar de idades até aos 31 ou 32 anos, que tinham feito o percurso connosco, queríamos ver o que o CAN ia dar e depois disso fazer mudanças. Já tínhamos feito, contávamos com jogadores de 23, 24 e 27 anos, tinhamos uma base, e gradualmente íamos substituindo jogadores mais velhos por mais novos. Isso foi apresentado a elementos da direção antes do torneio para se fazer essa mudança depois do torneio, uma mudança que mal se ia sentir porque alguns jogadores que já estavam a jogar dentro dessa faixa etária. Agora... a CAN era importante, com uma particularidade. Alguns destes jogadores tiveram sucesso com a seleção, mas nunca ganharam o título, tentamos jogar com esse fator emocional porque era a última oportunidade de marcar a história do Egito. Mas a CAN tem particularidades diferentes do que se passa no ocidente e na Europa.
- Era aí que queria chegar. Em função das notícias que chegam, não é fácil jogar em África, preparar a logística de uma competição destas, há várias fatores como o clima, o local de estágio, as distâncias, alimentação, centros de treino... O que é que o mister lá encontrou e até que ponto isso fez diferença na prestação da equipa?
- Pois, isso é de facto a pedra fundamental. Enquanto na Europa quando competimos ao alto nível, quase se isola a qualidade individual do treinador e dos jogadores para fazer a diferença, em África, em particular na CAN, há muitas mais variáveis em jogo. Quando viajamos do Cairo para a Costa do Marfim foram 8 horas e 20 de voo, depois os climas são completamente diferentes, humidade imensa, muito calor... Até aos oitavos de final, as equipas áfricas-árabes (Egito, Tunísia, Argélia, Marrocos, etc...) foram eliminadas até aos oitavos de final, equipas fortes como o Gana também. Na véspera do sorteio do calendário, houve um sorteio para ver quem fica num determinado campo de treino e hotel, não podemos escolher o que queremos. Mesmo que quisessemos, não há hotéis suficientes nesses países e os melhores são guardados para as 24 seleções, reservados pela CAF. Ficamos sujeitos ao que houver para dormir e treinar. Nós preparamos bem a CAN, com profisisonalismo e reuniões constantes, mas uma das coisas que me preocupou sempre - fui consultando várias seleções - nestas competições é o tempo que se demora nas viagens de autocarro, que tem um peso enorme. É quase um mês fechados, o nosso campo de treinos estava a 40 ou 50 minutos do nosso hotel, 50 minutos para lá, mais 50 para voltar, com trânsito bloqueado pelo meio e a polícia a abrir estradas para passarmos. Isto vai criando ruído. Ao princípio, a motivação está lá toda e dá para disfarçar, à medida que vamos avançando sente-se o peso destas questões. A humidade, a temperatura, as viagens, a relva, os campos de treino - se bem que houve qualidade nos estádios e nos campos de treino -, mas a realidade ao redor faz com que as equipas tenham rendimento elevado ou não. Não digo isto por mim, mas pelo que a CAN nos vai mostrando: as equipas mais poderosas saíram cedo, depois as equipas mais pequenas estão a trabalhar muito bem e tiraram pontos a equipas fortes (Cabo Verde, Moçambique, Angola fizeram um belíssima campanha), o RD Congo, em 27 jogadores, tinha 23 a jogar na Europa, em França, Inglaterra, Espanha... Há muitas equipas, teoricamente não tão reconhecidas, mas que têm estado a trabalhar muito bem no seu seio, com boas academias, bons planos de trabalho, boa visão e que se apresentam muito bem. Depois há a variável da temperatura, que foi mesmo difícil e era percetível nas transmissões. As camisolas estavam encharcadas e os jogadores com ligeireza no jogo. Tudo isto tem influência, às vezes apanhar um pouco de sorte ou aquela onda positiva para se embalar para uma boa campanha, ou então as coisas começam mal e têm tendência a não entrar nos eixos. Para atestar isto, a história do vencedor do CAN é surreal. A Costa do Marfim estava praticamente eliminada, apura-se quase por magia (para os oitavos) e a forma como conquista o torneio é sui generis. Nunca há uma relação direta entre a qualidade das equipas e do resultado.
- O mister falou no aspeto da RD Congo, com muitos jogadores a jogar na Europa, olhamos para a equipa do Egito, para além do Mohamed Salah, temos o Elneny (Arsenal), o Marmoush (Frankfurt) e o Mostafa Mohamed (Nantes), como mais conhecidos no futebol europeu, onde a margem de evolução e a forma de trabalhar são outras, poderá isso ter influência no rendimento coletivo da seleção?
- Eu acho que sim, senão estaríamos todos enganados. Se os melhores jogadores do mundo inteiro vêm jogar as grandes competições (europeias), por alguma coisa é. Temos o exemplo da nossa seleção, como são os jogadores quando estão cá (Portugal) e quando vão para outros campeonatos. Os contextos têm uma importância decisiva no rendimento e qualidade dos jogadores. O Egito é um caso muito particular: ao contrário dos outros clubes africanos, tem dois ou três clubes que conseguem segurar os jogadores (Zamalek, Pyramids e Al Ahly) e lá são estrelas, não é fácil tirá-los dessas equipas. Já pagam muito bem e os jogadores não saem diretamente para o Chelsea ou Liverpool, têm de fazer um caminho como o Salah, Eghazy e Elneny fizeram, que é sair aos 19 anos e começarem o seu percurso. Mas há muitos poucos que jogam com 19 ou 20 anos no Egito, para eles ser jovem é ter 24 anos. Falei permanentemente nisto quando estava lá, 24 anos é tarde. Ninguém vai buscar um jogador com 24 anos para fazer adaptação aos 26 e ter um rendimento para ser vendido para outro lado. Os jogadores jovens não jogam no Egito porque não têm espaço, depois há também a questão da língua e da própria vida. Enquanto na Nigéria ou Senegal falam francês e inglês, no Egito a língua corrente é árabe. Quando chegam à Europa têm muita dificuldade, socialmente é totalmente diferente, sem amigos e família, o sol, o clima... com a dificuldade da língua ainda é mais difícil. Temos um exemplo muito curioso, com um jogador que estava na minha equipa que teve uma lesão caricata, tinha saído do Zamalek para o Midtjylland por três milhões de euros, marcou ao Sporting na Liga Europa no primeiro jogo que fez. Depois lesionou-se e passados três meses, no final da época, voltou para o Al-Ahly do Egito... Lembro-me que num dos estágios da seleção, permiti que ele entrasse um dia mais tarde para se poder casar e a mulher poder acompanhá-lo à Dinamarca, mas depois voltou para o Egito. Senti que ele precisava do máximo apoio fora do país e nada melhor do que ter a família. O exemplo que temos de Angola, Cabo Verde... às vezes nem é preciso jogar na Europa, basta sair do seu país porque tudo muda: vai à procura de uma nova vida, adapta-se a uma nova realidade, cresce quase do nada, joga com melhores jogadores, terrenos diferentes, condições melhores, profissionalismo superior... tudo isso, mesmo em campeonatos reduzidos, faz com que cresçam. Esses jogadores são os únicos que o Egito tinha a jogar na Europa, e atenção que há jogadores com muito potencial que se fosse tudo bem feito tinham capacidade para jogar na Europa. Mas nada ajuda a que saiam de lá, a vida, a parte social, o que representam nos respetivos clubes é muito difícil tirá-los de lá. Há uma encruzilhada que não é fácil de se ganhar, não sou eu que o digo, diz o Brasil, Portugal, Argentina, um conjunto de países com jogadores em grandes competições.
- Para terminar este capítulo do Egito, é incontornável perguntar como é trabalhar com Salah? Ele elogiou-o muito quando saiu da seleção...
- É um gosto enorme, tínhamos uma relação giríssima com conversas interessantes, particularmente sobre a seleção e o futebol egípcio. Gostei muito de trabalhar com ele, é uma estrela dentro e fora do campo, no sentido positivo. Tem uma grande capacidade de decidir dentro de campo, um apetite e uma apetência para o golo que é quase ímpar, sabe onde a bola vai aparecer e às vezes com ações tão simples que não precisa de grande brilhantismo, mas aparecer no momento certo e na altura certa. Muito comprometido com a equipa e os colegas, um grande sentido coletivo, não só no próprio jogo, mas também com a equipa. É o contrário do que imaginámos nestes jogadores, de só pensarem em si. Não é nada disso, gerimos as situações das melhores formas, num ou outro jogo em que poderia dar oportunidade a outro jogador e uma ou outra vez saiu mais cedo da concentração para gerir. É um jogador que tem 70 jogos por época, sempre a jogar de 3 em 3 dias, tinhamos estas situações de pensar no que seria o melhor para ele. Temos uma relação muito boa, gostei de trabalhar com ele, é muito humilde e profissional, nada o abala, porque também é regrado. Tínhamos uma margem para tomar o pequeno almoço, às 09:00 estava lá sempre à mesma hora. Estes hábitos e rotinas ajudam os jogadores a prolongarem as carreiras e rendimento. Adorei trabalhar com ele.
- O seu telefone tem tocado para voltar ao ativo? Como estão as coisas, quais são as suas ambições, sente falta do ambiente diário do balneário no clube do que apenas de tempos a tempos?
- Estou bem resolvido em relação a esses questões. Quando saí, nas semanas seguintes, recebi um conjunto de contactos, propostas e possibilidades que até estranhei. Primeiro porque, ao estar numa seleção, abriu-se esse mercado de seleções, depois ao fazer a caminhada na seleção houve um reconhecimento dos clubes da qualidade. Tive vários contactos, na altura disse que não queria treinar, queria voltar para Portugal para estar com a minha família, vamos vivendo dia-a-dia e não queria entrar num clube. Os contactos surgiram, não quis começar, não senti a necessidade de estar a treinar, tenho tanta coisa para viver e usufruir que, em determinados momentos, temos de ter a capacidade de o fazer. Neste momento da minha vida posso fazer isso, não tenho que estar sujeito a querer ir quando os outros querem, é quando eu entender. Não tenho a necessidade de estar no ambiente de balneário, adoro futebol estou sempre a ver, não tenho a obsessão por ir para o treino. Portanto, agora passa por um estado de espírito de ter um sentimento de ir para um clube que me queira. Até à data, ainda não senti isso. Veremos daqui para a frente, no início da próxima época, o que vai acontecer. Há uma coisa clara: não irei para nenhum clube só por ir. Tenho que ter aquele projeto. Não tem que ser uma equipa incrível, tem é que me dizer algo, tenho que ter a vontade de querer aquele projeto...
- Tem que sentir o apelo... Nesse contexto, já disse que Portugal não está fora dos horizontes, mas o estrangeiro também não.
- Não está não, penso que mais facilmente acontecesse no estrangeiro. Quando saímos a primeira vez, fica mais fácil. Já estive na Arábia Saudita, na Rússia e Egito, estou preparado para ir para o mundo inteiro. Principalmente, é o que me for solicitado, ver o que as pessoas querem, se há condições, se encaixo no perfil do clube... se não, mais vale estar quieto e ter a noção de me sentir bem nesta altura.
- Os treinadores portugueses são cada vez mais reconhecidos por todo o mundo, vê-se o que aconteceu recentemente no Brasil, em Inglaterra, o Paulo Fonseca em França, o Mourinho no futebol italiano... Não diria que há muito por onde escolher, mas certamente há projetos interessantes. Como treinador, identifica-se mais com que tipo de futebol? Diz-se que Inglaterra é o topo, o Rui Vitória pensa assim?
- As vezes que joguei em Inglaterra nas competições europeias houve, de facto, uma atmosfera diferente. Portanto, percebo porque é que as pessoas dizem que é o topo. Pelas conversas que vou tendo com os meus colegas, é um ambiente mais saudável, usufruir do jogo em si. De facto, é um campeonato muito aliciante. Mas às vezes as oportunidades não surgem nos momentos certos e também não sou obcecado em ir para aqui ou para ali. Vejo que há possibilidades de bons trabalhos em vários lados. Há tempos li um estudo que dizia que os treinadores portugueses no último século ganharam 75 títulos em 30 países diferentes. Isto é uma marca que não há noutro lado no mundo. Há bons trabalhos para se fazer em muitos países e muitos contextos, é isso que penso que possa surgir na altura em que eu entenda que esteja pronto.
- Aproveito para recordar a declaração do Armando Evangelista que disse que a grande mais valia do treinador português é a necessidade de atualização constante, porque as dinâmicas que sente que são as melhores dinâmicas agora, não serão as mesmas daqui a seis meses. O Rui também é desses treinadores?
- Concordo com isso, mas não diria que é a mais importante. Hoje não podemos pensar que o que fizemos o ano passado está adequado, os jogadores estão em constante mutação, por isso só podemos olhar para trás como registo, com pensamento crítico e de perceber o contexto para tomar as melhores decisões para o futuro. A grande riqueza do treinador é a capacidade de perceber o contexto. Temos uma parte científica, mas também somos muito intuitivos. Chegamos a qualquer lado e começamos a perceber como é que podemos meter a mão na equipa, o que precisam... Somos uma mente flexível, não por mudarmos a nossa forma de estar, mas na análise de perceção do contexto. Concordo com o que o Armando disse, mas não só no estrangeiro, é em qualquer lado. Se pensarmos que o que fizemos é o que está certo, estamos totalmente errados, porque os exercícios e o que eu pensava há um ano já tenho ideias diferentes hoje e cresci com novas ideias em relação ao que tinha adquirido. Penso que é fruto do que passamos, no início da minha carreira, a fazer folhas de convocatória, planos de viagem, tinha de montar tudo em computador e isso deu-me uma bagagem da procura das melhores soluções, é uma parte proativa. Hoje ainda se reflete, não ficamos parados, nem choramos com a falta de condições, vamos sempre à procura das melhores soluções para as equipas. Essa é a riqueza do treinador.
- Não coloca de fora a possibilidade de treinar em Portugal, não precisa de ser no Benfica, FC Porto ou Sporting, mas há outros clubes a fazerem bons trabalhos, o SC Braga já tem instalações de topo, o Vitória SC é um histórico, esta temporada Arouca e Moreirense estão a dar que falar... Um projeto deste tipo poderia aliciá-lo?
- Poderia, de certa forma. Teríamos de ver bem o que estaria por trás de tudo isto. Entrar neste contexto no futebol português, com as confusões que existem, se fosse algo que não se identificasse comigo, diria que não. Se fosse uma coisa que tenha uma relação com o futuro, em que possa intervir no desenvolvimento de jogadores e equipa, algo com cabeça, tronco e membros sem visão imediatista, é sempre uma possibilidade. Mas também vejo que não é fácil voltar a Portugal, não só a nível financeiro, como a possibilidade de disputar competições aliciantes, mas não fecho a porta a nada. Muitas vezes é o que surge no momento. No fundo, é uma conversa de dois amigos e às vezes daqui pode nascer uma relação interessante. Não fecho essas possibilidades.
- O Brasil também o pode atrair, em função do bom feedback dos treinadores que lá estão?
- Sim, já houve muitas possibilidades de contactos que surgiram e que eu entendi não ser o momento certo. Mas o Brasil tem uma riqueza de jogadores, vou acompanhando sempre o campeonato, não é nada fácil, um dos mais complicados do mundo por ter um conjunto de equipas de enorme qualidade a lutar pelo topo, um calendário denso... Por outro lado, vejo todas aquelas equipas com bons jogadores. O Brasil é talento puro, nunca mais acaba. Há trabalho para fazer, estão a trabalhar cada vez melhor, só não fui porque as coisas não coincidaram no momento certo. A oportunidade já surgiu e estou convencido que isso vai acontecer mais tarde ou mais cedo.
- Um dos telefonemas que recebeu quando saiu do Egito foi do Brasil?
- Foi sim.
- O Brasileirão vai começar dentro de pouco tempo, neste momento disputam-se os estaduais, é provável que aconteça algo até lá ou vai esperar até agosto?
- Não creio que vá acontecer nada agora, pelo meu estado de espírito e porque também tem de haver essas conversas. Não creio que aconteça algo até ao final da época. Não tenho pressa, estou perfeitamente bem, posso ter capacidade de decisão que é algo que sempre ambicionei: treinar quando eu quiser e ter a possibilidade de decidir ir para o clube que quero. E também não estou, ao contrário de alguns colegas meus, obcecado com esse ambiente de balneário. Esta passagem por uma seleção fez-me estar um pouco mais distante e lidar com o balneário de forma diferente.