Exclusivo com Ferrão: "Tive a oportunidade de ir para o Benfica"
São 11 horas da noite no Uzbequistão, oito horas à frente do Brasil, e a expedição verde e amarela só chegou recentemente ao país asiático, com o consequente jet lag. Isso não impede que Carlos Vagner Gularte Filho (33 anos), mais conhecido como Ferrão, nos receba com a habitual simpatia, alegria e humildade. É com muito prazer que nos concede alguns minutos e agradece muito o facto de o termos recebido para a entrevista.
A nível de clubes, ganhou tudo com o Barcelona. Individualmente, foi eleito melhor jogador do mundo por três vezes (2019, 2020 e 2021) na categoria, um trono em que sucedeu ao próprio Ricardinho, que o elogiou há pouco tempo. Com a seleção brasileira, continua a lutar para levantar um troféu.
Embora o ano não tenha sido fácil, com uma lesão grave que o impediu de dar o seu melhor, a sua saída do Barcelona e os maus resultados desportivos na sua época de despedida como Culé, enfrenta um novo Mundial com as esperanças intactas e a fome de golos no auge. Depois do grande evento, será altura de pensar na etapa que começa no Cazaquistão com o FC Semey, mas, durante um mês, a única coisa que importa é o seu país.
Mas nem todo o 2024 de Ferrão tem sido feito de maus momentos... Há quase sete meses que foi pai e admite que, desde então, "é um homem diferente". Quer o melhor para a sua família e, nesta conversa, deixou claro que a sua prioridade na vida é fazer o que puder para lho dar.
"Sinto-me nostálgico"
- Como é que ele se sente depois de terminar a sua passagem pelo Barça?
- Depois de terminar a minha passagem pelo Barça, sinto-me nostálgico e gostaria que tivessem sido mais anos. Mas saio com a sensação de ter cumprido as minhas obrigações. Foram tantos anos... Os melhores da minha carreira, sem dúvida. Vivi-os e desfrutei muito com toda a equipa, com o clube. Digo sempre: dei tudo pelo Barça, porque muitas vezes joguei lesionado, fiz tudo. Mas o Barça também me deu tudo. Por isso, sempre tivemos uma relação tão boa entre o Ferrão e o Barça. Saio com algum peso no coração, porque já foi há muito tempo, mas foi uma decisão muito bem pensada da minha parte. Estava ansioso por um novo desafio.
- Foi um ano difícil devido às lesões. Como foi viver o lado mais duro do desporto?
- Esta época sofri muito. Logo na pré-época sofri uma lesão que já conhecia (rotura do tendão de Aquiles), o que é um pouco duro. É a parte mais difícil, mas as lesões também nos ensinam muito. Valorizamos muito mais quando estamos lá e outras coisas que não nos preocupavam antes (de nos lesionarmos). As lesões nunca são boas, mas há que manter sempre a parte da aprendizagem. Felizmente já passou e agora estou muito bem e estou a preparar-me fisicamente ao máximo para estar ao meu nível quando começar o Mundial.
- Em termos desportivos, porque é que acha que as contrariedades no campeonato, na Supertaça e na Liga dos Campeões surgiram?
- Foram momentos muito difíceis. Tivemos muitas lesões, a começar por mim na pré-época e depois por outros colegas de equipa. Éramos um plantel muito grande, porque jogávamos muitas competições, mas também dependíamos do nosso físico. Com esse número de lesões, quase nunca estávamos todos a treinar, tínhamos de dosear porque havia menos gente. Os que estavam lá também jogavam mais minutos do que o normal, havia mais lesões por causa do número de minutos... Já para não falar do facto de termos tido jogadores super importantes que se lesionaram. Nos momentos importantes é preciso ter jogadores com confiança para tomar decisões. Foi o caso de Dyego, eu próprio e Sergio (Lozano), três dos principais jogadores da equipa nos últimos anos que se lesionaram em muitos momentos importantes da época. Tivemos de jogar quase todo o ano com mais de metade da equipa de reservas. Os rapazes deram-nos muito e têm muita qualidade, mas em alguns momentos precisamos da experiência para chegar e dizer 'vamos ganhar aqui'.
- Os conhecidos problemas financeiros do clube influenciaram a sua decisão de deixar o Barcelona?
- A decisão de encerrar o meu ciclo no clube, para dizer a verdade, não teve nada a ver com os problemas económicos. O Barça sempre foi muito bom para mim e até tinha uma proposta de renovação. Estava ansioso por um novo desafio. Já eram 10 anos no mesmo clube, que é o clube da minha vida, o melhor sítio onde podia estar. Mas, a nível desportivo, às vezes queremos provar o nosso valor. Queremos conquistar tudo de novo com outra camisola. Era, sem dúvida, o que eu mais queria fazer: mudar de ares e mostrar que o Ferrão não é só o Ferrão no Barça, que pode ser o Ferrão em qualquer lado. Já há uns anos tinha falado com a minha mulher e com a minha família a dizer que precisava de mudar. Acabou por ser neste momento do clube, mas não teve nada a ver com isso.
"Tive a oportunidade de ir para o Benfica"
- Porque é que escolheu jogar no Semey do Cazaquistão e não em Portugal ou no Brasil?
- Sempre gostei de desafios. Tive a oportunidade de ir para o Benfica, que era uma das outras opções que eu valorizava bastante, porque eles vinham de um ciclo em que o Sporting os estava a castigar muito. Era uma das prioridades, porque me atraía mudar o ciclo de vitórias do Sporting. Também queria voltar ao Brasil, porque é o meu país, saí de lá com 19 anos, há muito tempo. Mas acho que ainda não era a altura certa. Gosto de estar na Europa, de competir, de jogar na Liga dos Campeões. Quando o Semey me propôs um projeto para chegar à Liga dos Campeões e tentar começar a ganhar, o que sabemos que não é fácil, chamou-me a atenção. O aspeto económico também me chamou a atenção, mas o essencial foi o projeto que me apresentaram com vista a disputar a Liga dos Campeões e a investir para que seja possível ganhar, não apenas competir. Foi isso que me fez escolher o Semey. O Kairat dominou durante muitos anos e eu tenho a oportunidade de iniciar um projeto e mudar todo o domínio do Kairat. São estes os projetos desportivos que me chamam a atenção. A ambição. E lá temos a ambição de tentar ganhar muitas coisas.
- Quais são as suas melhores recordações da sua passagem por Espanha?
- Poderia citar um milhão.... São muitos anos, muitos momentos, mas antes de mais diria o nascimento da minha filha, a família que construí em Espanha. É a coisa que mais pesa na minha cabeça. Também os títulos que conquistámos, os momentos gloriosos do desporto, todos os adeptos que me apoiaram sempre. Acho que não há dinheiro que possa pagar isso. São momentos desportivos em que se vê que todo o esforço que fazemos, a nossa vida de viagens, treinos, tudo, vale a pena quando vivemos esses momentos. Começo a lembrar-me agora e vejo como esses anos foram mágicos. Sem dúvida, vou guardar os títulos. A primeira Liga dos Campeões que ganhei, depois de tantos anos a lutar por ela; a primeira Liga, que foi brutal... São momentos que nunca esquecerei.
"Se as lesões me respeitarem, posso voltar a ganhar este prémio"
- Já foi eleito três vezes o melhor jogador do mundo, acha que pode atingir o nível para voltar a ganhar este prémio?
- Sem dúvida! Consegui ser três vezes o melhor jogador do mundo e penso que posso voltar a sê-lo. Tive dois anos com lesões, este ano não consegui. Esta época foi fatal, porque falhei quase toda. E na outra também tive algumas lesões ligeiras que me tiraram quatro ou cinco meses. Penso que, se as lesões me respeitarem, posso voltar a ganhar este prémio. Agora só falta trabalhar e mostrar às pessoas que o Ferrão ainda está a dar cartas. Essa era uma das partes do novo desafio, do novo projeto (Semey): voltar a ganhar com uma equipa que não conhece a Liga dos Campeões. Acho que isso me ajudaria a voltar a ganhar prémios como este. Portanto, o projeto não é só ir lá e ganhar, mas relançar a minha carreira. Mostrar lá que o Ferrão vai longe e que pode ganhar com outras equipas.
- Agora, Mundial no Uzbequistão, o que significaria para si ganhar com o Brasil?
- Bem, para mim é tudo. Acho que é o máximo na carreira de um jogador ganhar um Mundial com o seu país. Temos essa oportunidade. Temos uma grande seleção e penso que podemos vencer este desafio. Sabemos que não é fácil, porque há muitas equipas que estão a um nível muito bom, mas nós também estamos a um nível muito bom. Agora que estamos aqui, a treinar arduamente, vemos que é possível ganhar. Estamos muito felizes de poder defender o nosso país e mostrar que o Brasil ainda é o país do futsal. Para mim, seria tudo. Seria ganhar o único título que me resta. Seria o mais importante da minha carreira.
- O Brasil não vence o Mundial desde 2012, é muito tempo para a melhor equipa do mundo?
- O desporto mudou muito. Vemos isso no futebol, onde todos os anos ganha uma equipa diferente. É cada vez mais difícil ganhar e o Brasil não ganha há dois Mundiais. Em 2016, perdemos muito cedo e no último perdemos para a Argentina num jogo que, para ser honesto, foi talvez o nosso melhor. Mas, bem, foi o típico dia em que a bola não entra, em que se remata e o guarda-redes para tudo. O desporto é assim e é por isso que o Mundial é tão bonito, pela dificuldade de o ganhar. Então, sim, é muito tempo (sem ganhar), mas para nós que competimos, sabemos que não é tanto tempo assim. Mas não há dúvida de que o Brasil, com a equipa que tem, tem de estar sempre a lutar para ganhar. Temos uma responsabilidade muito grande, além de curtir e ganhar para o nosso país, temos a dificuldade de colocar o Brasil de volta onde ele merece estar, que é o Top 1 do mundo. Todos esperam muito de nós, mas agora estamos mais maduros, mais preparados mentalmente para poder trazer esse Mundial para o Brasil.
- A equipa está a sentir-se bem durante os treinos?
- A verdade é que temos uma sensação muito boa nesta preparação. Acho que nas outras preparações não conseguimos ter tantos bons momentos, tantos bons treinos. Há coisas que ninguém sabe: na última, na Lituânia, em 2021, tivemos problemas com a covid-19, treinámos apenas seis jogadores durante quase 20 dias. Depois começámos a jogar praticamente sem treinar, no regresso das férias. Não é uma desculpa, mas agora conseguimos ter muitos mais dias de treino e prepararmo-nos muito melhor. Vejo a nossa seleção muito bem preparada, mas sabemos que isso não é tudo. Haverá muitos problemas mentais, outras equipas que também estão bem preparadas. Agora cabe-nos a nós mostrar que a preparação foi boa e pô-la em prática no campo.
"Pensamos, talvez mais tarde, em voltar a jogar no Brasil"
- Como é que o Ferrão encara a vida desde que foi pai? O último passo da sua carreira poderá ser voltar a jogar no Brasil para se instalar no país com a família?
- Desde que foi pai, o Ferrão é um homem diferente. A verdade é que estou muito feliz. É uma experiência que nunca tive antes e agora tenho a oportunidade de o ter. Tenho uma família tão simpática... Isso dá-me vontade de me dedicar cada vez mais, de lhes mostrar (à mulher e à filha) que estou muito orgulhoso. Sou outro homem que só pensa na família. Sabemos que não vai ser fácil no Cazaquistão, por causa da língua e do frio, mas estamos juntos e muito felizes. Já pensámos, talvez mais tarde, em voltar a jogar no Brasil, perto da nossa terra natal. Queremos estar lá para construir a nossa vida pós-carreira. É uma opção que valorizamos bastante e não é definitiva, porque eu vou para um sítio (Cazaquistão) de que podemos gostar muito e queremos ficar lá muito tempo, talvez até me reformar. Portanto, não sei. Mas sei que o Brasil é uma das opções que valorizo muito para poder fechar o ciclo desportivo e ter uma vida pela frente lá.