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Milene Ramos: "Tento elevar a nossa bandeira, mas sinto-me um pouco esquecida"

Milene Ramos trabalha atualmente no EPS, da Finlândia
Milene Ramos trabalha atualmente no EPS, da FinlândiaArquivo Pessoal
Milene Ramos é uma digna representante de Portugal além-fronteiras. Aos 32 anos, a treinadora portuguesa cumpre a segunda experiência no estrangeiro na Finlândia, depois de uma passagem pelo Canadá, e deu conta dos desafios que é ser mulher num meio predominantemente masculino. Os sonhos e objetivos contados em entrevista ao Flashscore.

O futebol cativou Milene Ramos de tenra idade. O pai foi o principal responsável por passar esse bichinho e é esquerdina "muito por culpa" dele. Já a mãe foi sempre mais a voz da razão e incentivou-a a seguir os estudos. Talvez com o medo bem presente das dificuldades que são impostas às mulheres num meio predominantemente dominado por homens.

"O futebol não é para mulheres". Estamos em 2024 e ainda ouvimos este tipo de afirmação nos meandros do futebol. Ainda há um longo caminho a percorrer no meio deste pensamento tão pequeno de quem (se) alimenta deste desporto. Não há futebol masculino ou futebol feminino, há futebol e é "igualmente bonito e atrativo". Mas não é tão simples quanto isso. Os propalados ventos de mudança ainda não chegaram com a força que tanto se apregoam. 

As oportunidades contrariam a narrativa e mostram que as mulheres continuam sem estar em pé de igualdade. É uma luta de gerações.

Milene Ramos é apaixonada pela sua profissão
Milene Ramos é apaixonada pela sua profissãoArquivo Pessoal/Opta by Stats Perform

"Os meus pais ajudaram-me muito e não estava a conseguir retribuir"

Esta é a história de Milene, uma treinadora portuguesa que decidiu deixar a zona de conforto para ir ao encontro das oportunidades no estrangeiro. Primeiro no Canadá e, agora, na Finlândia. Mas já lá iremos. Antes vamos puxar a fita atrás e perceber como foi o trajeto até aos dias de hoje.

Ainda antes de chegar ao futebol, Milene começou a jogar futsal federado aos 15 anos. A formação foi feita na rua com os amigos. "Uns montinhos de pedras faziam de balizas. (...) Joguei sempre com rapazes e nunca me senti excluída. Nunca era a última a ser escolhida, acho que isso era um bom sinal", recorda a treinadora, em conversa com o Flashscore.

O futebol apareceu uns anos mais tarde no Belenenses da Marinha Grande e a ida para a Escola Superior de Desporto de Rio Maior levou-a até ao A-dos-Francos, para a primeira experiência no principal escalão do futebol nacional. Muito longe de como o conhecemos hoje.

"Lembro-me que só para o final da minha passagem por lá, na época 2017/18, começamos a receber 10 euros por vitória. Mas se tivessemos faltado a algum treino, o clube descontava desse valor. A verdade é que também não ganhávamos muitos jogos (risos). Eram outros tempos. Não digo que hoje não exista esse sentimento, mas na altura havia amor à camisola", descreve.

Já nessa fase acumulava o papel de jogadora com o de treinadora. "Uma escolha natural". Não era uma jogadora extraordinária, mas a paixão era tanta que queria ficar ligada ao futebol de alguma forma. O seu percurso académico passou por Condição Física e Saúde antes de mudar em definitivo para Treino Desportivo e o sonho começou a ganhar asas em 2019.

Milene Ramos trabalha na formação do EPS
Milene Ramos trabalha na formação do EPSArquivo Pessoal

Depois de vários anos como treinadora nas camadas jovens da União Desportiva da Batalha e de alguns trabalhos de coordenação na AF Leiria, Milene Ramos fez a escolha de uma vida. A oportunidade de emigrar já tinha surgido antes, através de uma proposta para abraçar um projeto numa academia da Juventus no Kuwait, mas sentiu que não era o melhor passo. Destino: Canadá.

"Já estava a trabalhar na UD Batalha há muitos anos e sentia-me estagnada. Não podia trabalhar a tempo inteiro como treinadora e o que ganhava era praticamente para pagar as despesas. Comecei a ficar frustrada. Estudei cinco anos, os meus pais ajudaram-me muito e eu sentia que não estava a conseguir retribuir essa ajuda", justifica.

"A oportunidade de ir para o Canadá surgiu através de um professor. O London FC queria especificamente uma treinadora e eu enviei o meu currículo. Em Portugal nunca tinha treinado uma equipa feminina e o meu inglês era muito mau, mas precisava de sair da minha zona de conforto. A minha mãe foi a primeira a dizer 'vai'. Aquele 'vai, mas quero que fiques' (risos)", acrescenta.

Milene mudou-se para a Finlândia em 2021
Milene mudou-se para a Finlândia em 2021Arquivo Pessoal

Pandemia alterou a rota

Num país muito mais desenvolvido ao nível do futebol praticado por mulheres, Milene Ramos "esperava encontrar jogadoras muito boas, mas superou as expectativas". O futebol de formação estava um passo à frente e deu-lhe uma bagagem muito boa para o próximo desafio. Destino: Finlândia.

O facto de não se sentir segura no Canadá, por altura da pandemia de Covid-19, pesou muito na decisão de colocar um ponto final na ligação e a isso juntou-se um convite de um antigo adversário dos tempos da UD Batalha, que estava como coordenador nos finlandeses do Peimari United.

"Ele (Tiago Santos) foi muito honesto comigo. Disse-me: 'nunca tivemos uma treinadora no clube e o presidente fica muito reticente quando falamos em treinadoras'. Não me preocupei muito com isso e a entrevista correu muito bem. Estive dois anos no clube, sendo que subi de divisão com a equipa senior feminina", lembra.

Apesar de encontrar na Finlândia o espaço para ser profissional como treinadora de futebol, Milene Ramos sentiu algumas dificuldades para entender o contexto, entre os quais as diferenças entre o masculino e o feminino.

"As seniores tinham de pagar para jogar, enquanto que no masculino eles não pagavam, e alguns até recebiam. Para mim enquanto mulher era complicado. Custou-me muito a aceitar", conta ao Flashscore.

"Fiquei a segunda época no Peimari porque gostava das jogadoras, mas foi complicado...", confidencia.

Milene Ramos com uma das suas equipas do EPS
Milene Ramos com uma das suas equipas do EPSArquivo Pessoal

Desde ter de voltar a jogar (!) por falta de jogadoras a ter uma jovem jogadora a sair do balneário e ir ao bar do estádio comprar um cachorro quente antes de um jogo, o Peimari United foi um capítulo cheio de contratempos e emoções.

"Tive o presidente a dizer-me para colocar a jogar uma jogadora porque a mãe era patrocinadora do clube. Não o fiz! Eu tenho príncipios e valores. Só acabei a época por respeito às jogadoras. Não senti apoio por parte do clube, que só estava a pensar no dinheiro", atira.

Do Peimari United para o EPS. Milene Ramos deu o salto para um clube de nível superior, mas continua a travar uma "luta diária para passar príncipios e valores"

"O finlandês trabalha muito com agenda... É difícil para eles compreender como é que há uma convocatória à sexta-feira para um jogo ao sábado ou ao domingo. Eles achavam que a convocatória tinha de sair com uma semana de antecedência. Tive de explicar o porquê numa reunião. Depois tinha pais que me diziam que pagavam para as filhas jogarem na equipa A. Eu digo que eles pagam para a filha treinar e eu é que decido se joga na B ou na A. Tem sido preciso partir muita pedra", explica.

Mentalidades. Apesar do "privilégio" de fazer vida do que mais gosta, a treinadora portuguesa não esconde que "ser mulher" continua a ser um entrave e sente que há outro dado que não joga a seu favor: "ser estrangeira". Mas não baixa os braços.

Milene Ramos trabalha nos finlandeses do EPS
Milene Ramos trabalha nos finlandeses do EPSArquivo Pessoal

"Sinto-me mais valorizada no estrangeiro"

- A Milene sente alguma diferença entre a forma como tratam uma treinadora em Portugal e na Finlândia? 

- Quando estava em Portugal já se viam algumas treinadoras. Depois fui para o Canadá a pensar que o futebol no feminino era mais forte, mas não vi mais treinadoras. Foi um choque. Na liga mais alta eu era a única treinadora. Aqui na Finlândia tenho visto mais treinadoras, mas na primeira divisão feminina não há nenhuma treinadora. Na época passada tinham duas, uma delas foi campeã, mas saiu com queixas porque um membro da direção fez muita pressão para ela meter a jogar uma jogadora que era familiar desse elemento. Mesmo no escalão sub-18 somos apenas três treinadoras.

- Como é que a Milene vê esses dados? É um claro sinal de que os passos ainda não foram dados... 

- É complicado. Acredito que eles não sao muito abertos a mudanças. Aqui sinto-me muito valorizada como treinadora, apesar de olharem muito para mim por ser mulher e estrangeira... A competência não tem género. Acho que as pessoas não percebem isso. Ainda assim, como disse, sinto-me mais valorizada no estrangeiro do que em Portugal. Custa-me dizer isso e até sinto alguma mágoa, porque tento dar o meu melhor no estrangeiro e elevar a nossa bandeira e sinto-me um pouco esquecida.

Ser mulher já é um obstáculo. Acho que já há mais oportunidades para jogadoras, treinadoras e dirigentes, mas elas têm de aparecer mais. Não ver nenhuma mulher (na primeira liga feminina) faz-me pensar. Mas também não tenciono ficar na Finlândia para o resto da minha vida.  

Milene continua muito atenta ao futebol português
Milene continua muito atenta ao futebol portuguêsArquivo Pessoal

"Os clubes amadores precisam de ajuda"

- Recentemente foi notícia que o Ingolstadt (3.ª divisão alemã) apostou numa treinadora, a Sarina Wittman, mas a verdade é que ainda vemos poucas mulheres em lugar de destaque e o facto de isto ser notícia também explica muito isso...

- É mais um obstáculo. Já temos ultrapassado tanto, este é mais um... Sinto-me frustrada porque não há muitas oportunidades. Se houvesse acho que as mulheres iam provar que têm competência e merecem trabalhar no futebol masculino. Por exemplo, como analistas, eu acho que nós somos muito mais atentas aos pormenores e não vemos muitas analistas mulheres. 

Ouvi sempre muitos comentários de que este não era um desporto para mulheres. Sinto que tenho de provar diariamente as minhas capacidades e de trabalhar o dobro. Aqui na Finlândia, apesar de achar que valorizam muito o treinador português, ainda sinto alguma discriminação por ser estrangeira. (...) Querem receber o nosso conhecimento, mas não gostam muito da mudança. Espero que isso mude nos próximos anos.

- Como é que a Milene tem visto a evolução do futebol jogado por mulheres em Portugal? 

- O campeonato português tem evoluído a olhos vistos. O campeão foi decidido nos últimos minutos e isso é sinal de que a competitividade tem aumentado. Mesmo na formação há mais competitividade e isso ajuda a abastecer as equipas profissionais e semi-profissionais. Há que dar os parabéns também à FPF, pois tem investido muito e espero que continue, sobretudo a ajudar os clubes amadores. Foram esses que sustentaram o feminino no passado e precisam de ajuda, não foi o Benfica, Sporting ou SC Braga que sustentaram o feminino. 

Já a Seleção portuguesa fez brilharete no Mundial e hoje conseguimos competir olhos-nos-olhos com qualquer seleção e ter o foco em ganhar. Após o Mundial houve um boom enorme. Há mais adeptos e já conseguimos ver os estádios com boas assistências. Tenho expectativas altas para o próximo Europeu, depois do que vi no Mundial. Acho que podemos fazer uma gracinha.

Milene acredita que o seu futuro vai continuar a passar pelo estrangeiro
Milene acredita que o seu futuro vai continuar a passar pelo estrangeiroArquivo Pessoal

"Voltar a Portugal não está no horizonte" 

- Sonha com um possível regresso a Portugal? Mesmo que isso implique baixar um pouco as suas condições?

- Essa pergunta é um bocado complexa. Eu tenho como objetivo chegar a uma equipa que esteja a competir na Champions, seja como principal, adjunta ou analista. Eu pondero muito as minhas decisões, apesar de o futebol ser muito volátil. As experiências no Canadá e na Finlândia foram muito enriquecedoras e voltar a Portugal não está nos meus planos. Mas nunca sabemos o futuro. Eu gostava de ir para outros patamares. 

- E como é que a Milene vê o futebol? Qual a sua ideia?

- Sou apaixonada pelo jogo ofensivo, coletivo e por encontrar soluções para atacar. A Helena Costa é uma das minhas referências no futebol, depois gosto de vários treinadores: Pep Guardiola pelo jogo posicional; Klopp pela maneira como as suas equipas pressionam; e também do Jorge Jesus. Gosto muito de beber as ideias destes génios.

Compara-se muito o masculino com o feminino e deviam parar com isso. São géneros diferentes. O corpo da mulher é diferente do corpo do homem e comparamos o incomparável. É futebol, é diferente, mas é igualmente bonito e atrativo. 

- Para terminar: qual o conselho que daria a uma jovem que procure as mesmas oportunidades no futebol? 

- Hoje há mais equipas. Que sejam resilientes. Vão ouvir 'não' muitas vezes, eu ainda oiço muito, mas sejam resilientes. Os primeiros 'nãos' deita uma pessoa a baixo, mas acredito que as gerações futuras já não vão ter de passar por muito daquilo que eu e muitas outras tiveram de passar no passado.