Valência: a um passo do abismo e um perigoso espelho do submerso Málaga
10 treinadores e três presidentes em nove anos. Um homem jovem sem qualquer experiência, filho do dono, como conselheiro. Contratações feitas por agentes amigos, e não pelo diretor desportivo em serviço, que não rendem. Temporadas em que não se cumprem nenhum dos objetivos delineados no verão. E tudo durante uma crise económica e social que faz com que o Valência caminhe em areias movediças com o abismo por perto.
A equipa che está na penumbra da LaLiga, à beira da descida. 20 pontos em 60 possíveis, um acima da despromoção. Cinco vitórias, cinco empates e 10 derrotas. Um jogador de 35 anos como referência do balneário (Edinson Cavani). Um guarda-redes que evita goleadas apoteóticas no Equador da temporada com mais de seis defesas por jogo (Giorgi Mamardashvili). Um treinador da casa, Voro, que, depois do adeus de Gattuso, prefere manter o lugar de delegado em vez ficar no banco a roer as unhas (assumiu o comando interino da equipa por... oito vezes, voltando sempre para a posição de delegado).
A saída de Gattuso foi a gota de água que virou o copo para uma falange de apoio que, em grande parte e apesar dos números irregulares, estava contente com a abordagem do antigo campeão do mundo. Mas o italiano disse "basta!" quando Peter Lim voltou a empatar a chegada de reforços de inverno. A sua demissão provocou outra crise para o dirigente da Singapura que há muito tempo não visita Valência. Como se não quisesse saber.
Uma história que se assemelha à do Málaga
Por muito que a atual presidente e mão direita de Lim, Layhoon Chan, negue a verdade, a realidade é que o Valência de Lim parece cada vez mais o Málaga do xeque catari Abdullah Bin Nasser Al Thani. E isso não é nada bom para a entedidade do Mestalla.
O Málaga era um clube elevador, daqueles que sobreviva um ano por não descer à segunda divisão ou que regressava no imediato ao escalão. Exceto a época gloriosa do falecido Joaquín Peiró, que os conduziu à conquista da Intertoto e chegaram às meias-finais da antiga Taça Uefa (agora Liga Europa), o clube sempre foi daqueles que sofrem. Até que chegaram os milhões cataris de um Al Thani que prometeu fazer do Málaga um dos grandes da Europa.
Na primeira época, sob o comando do português Jesualdo Ferreira e umas contratações de verão mais do que discutidas pelo seu valor elevado e baixa qualidade, a equipa caiu ao abismo. Só depois da chegada de Pellegrini, e com ele Demichelis e Júlio Baptista, é que a confusão foi resolvida. Na época seguinte, o investimento aumentou, as contratações melhoraram, foram trazidos jogadores de renome e reconhecidos e a equipa qualificou-se para a Champions.
Mas foi nesse momento que Al Thani travou o investimento. Aborreceu-se com o brinquedo e, apesar de o Málaga ter sido eliminado pelo Dortmund de Jurgen Klopp nos quartos da Champions - depois de eliminar o FC Porto nos oitavos - num dos mais descarados erros do árbitro de que há memória, os jogadores ficaram por receber muito, muito dinheiro. As dívidas chegaram também aos outros clubes e ao fisco espanhol. Mais de 100 milhões de euros no total.
Al Thani saiu do cominho - como Lim - e deixou a gestão em mãos mais competentes. Quando o clube, uma vez vendidas todas as estrelas e reduzidas as dívidas, se estabilizou, reapareceu para causar o caos novamente. E, entre outros negócios financeiros obscuros que estão atualmente em julgamento, nomeou os seus filhos como conselheiros. A única experiência destes com o futebol eram os jogos da Playstation. Ainda assim, ali estavam eles com salários de executivos de topo que o Málaga não conseguia suportar.
De volta a Valência
Como se pode ver, há muitos paralelismos com a história do Valência desde que Lim ficou com a maioria das ações. Antes da sua chegada, os che foram durante muitos anos a terceira equipa espanhola em termos de importância, atrás do Real Madrid e Barcelona. A chegada do investidor da Singapura suponha uma oportunidade para, com os seus milhões, aproximar-se dos gigantes. Mas o Valência passou dessa ideia para se converter numa equipa que tem medo da descida.
Como foi essa transição para o desastre? Pode a equipa che salvar-se de perder a categoria? Pode ir embora Peter Lim?
Com o entusiasmo do novo proprietário surgiram logo pesados investimentos em contratações e ainda o início da construção de um estádio que seria a inveja da Europa e geraria mais receitas para o clube. Mas é aqui que, como Al Tahni em Málaga, houve mentira, fraude, traição e trapaças. O que Lim fez foi pagar as transferências e emprestava os (seus!) jogadores ao Valência. Mas depois o clube estava obrigado a comprá-los... com juros. Mais dinheiro para ele, mais dívidas para a sua empresa, que por si só não conseguia suportar essas despesas. A Lim... dava-lhe igual.
Pelo menos, a nível desportivo, a situação escondia a realidade. Como o Málaga na Champions, bem sucedido em campo, mas podre na gestão. Con Murthy e Alemany a gerir o clube valenciano, con Marcelino no banco de suplentes e jogadores como João Cancelo, Gonçalo Guedes, Rodrigo ou Kevin Gameiro como protagonistas, chegaram duas qualificações para a Liga dos Campeões (2017/18 e 18/19) e uma Taça do Rei.
Da Taça ao desastre
Apesar desses êxitos, Lim estava aborrecido. Mais ainda quando Marcelino e Alemany pediram mais dinheiro para que a equipa desse o passo seguinte e pudesse lutar por mais títulos. A sua resposta foi despedir os dois em menos de um mês. A partir daí... o caos.
César Sánchez foi escolhido para a figura de diretor desportivo depois da primeira edição da Supertaça espanhola disputada na Arábia Saudita. Albert Celades foi o escolhido como treinador e, na reta final, o clube entrou numa série de maus resultados que, juntamente com a pandemia, ajudou a transformar a época num filme de terror. O novo estádio, já com os primeiros tijolos colocados, caiu em esquecimento porque, entre as milhares de desculpas e recursos, queria que fossem as obras públicas a pagá-lo.
Os adeptos já começavam a demonstrar o seu descontentamento ao ver que tudo tinha sido uma cortina de fumo. Sentiam-se enganados, exaustos. Não era só por não haver investimento, era que a dívida era tão alta que era preciso vender os melhores futebolistas para não entrar em bancarrota. Como o Málaga no pós-Champions.
Fracassada a era de César Sánchez - demitiu-se - e de Celades - despedido -, chegou Miguel Ángel Corona como coordenador do futebol. A reallidade é que Murthy nunca o deixou fazer nada ou lhe deu o poder de decisão que precisava. As decisões, como sempre, eram tomadas fora do clube por representantes que convenciam Liam para lhes dar ouvidos. E isso não fazia mais do que baixar o nível de qualidade do plantel e enfurecer ainda mais os já desolados adeptos que viam o declínio que o presidente não queria ver.
E ainda assim, a fé dos treinadores e do plantel valeu uma nova final da Taça do Rei com José Bordalás como treinador. Perderam. A resposta, em vez de seguir o caminho de construção, foi destruir de novo o projeto, vendendo, e mal, Carlos Soler, a estrela e porta-estandarte da equipa.
Do renascer a nova aposta falhada com o abismo por perto
Como resultado disso, a crispação social subiu muito mais, tal como os gritos de "Lim, vai embora já" que se repetiam - e ainda repetem - em milhares de gargantas a cada jogo, assim como a impossibilidade de reativar a construção do Nuevo Mestalla, fez com que Lim se fartasse de Murthy no passado verão e resgatasse Layhoon Chan, colocando-a como presidente. E para mostrar o "seu compromisso" nomeou o seu filho, sem experiência em gestão de clubes ou desportiva, como conselheiro. Não faz lembrar o Málaga de Al Thani com os seus filhos sem formação?
A situação, longe de melhorar e como seria de esperar, piorou. E o que é pior é que não se vê ainda o fundo do poço. A situação económica é complexa e mais ainda caso se confirme a descida à segunda divisão. Sem poder pagar por transferências neste momento, os salários da maior parte da equipa não podem parar na categoria de prata. Tal como aconteceu com o Málaga, que leva cinco temporadas perdido nesse limbo desportivo.
Daí que Chan não queira sequer ouvir falar de comparações com os andaluzes. Mas a realidade para o valencianismo é que são muitas semelhanças, demasiadas. De um grande investimento incial a não querer gasttar nem sequer para um pacote de sementes de girassol (aperitivo favorito dos adeptos espanhóis). Dos ares de grandeza à sobrevivência possível. E, claro, com as obras paralisadas de um novo estádio que também quis construir Al Thani em Málaga e nem foi capaz de começar as obras da Cidade Desportiva.
Em Valência vive-se entre o mau-estar social e as decisões apressadas. Os que querem ir e não podem. Os que vão quando querem ficar. As ruturas, os desenvolvimentos inesperados. O Valência recolhe os frutos da sementeira plantada em 2018 e, por agora, não se vislumbra um futuro animador... muito pelo contrário.